Ser
médica de Medicina Interna é sempre ver um doente como um todo, em todas as
suas vertentes.
Recebemos
o doente na urgência: debilitado e com queixas agudas que interferem com a sua qualidade
de vida. Depois temos 2 alternativas: ou o doente responde rapidamente e temos
uma solução muito rápida e dirigida às queixas ou o doente precisa de ser
estudado e tem que ser internado – quer pela queixa de base, quer pela
necessidade de cuidados mais prolongados.
No
internamento acompanhamos o doente no cumprimento de tratamentos, com os
reajustes necessários perante a evolução ou tornamo-nos o Dr. House e vamos
puxando de um novelo até descobrirmos o que o doente tem (e não, não é sempre
lúpus!).
A
satisfação maior que temos é dar alta a um doente que recebemos (por vezes em
estado grave) na urgência e temos a felicidade de acompanhar a evolução
positiva do mesmo até os devolvermos à família! Infelizmente, nem sempre
conseguimos. Somos médicos e humanos, não deuses ou milagreiros... também temos
que entender que o corpo humano tem limites (nomeadamente de resistência) e que
a Medicina Interna recebe, muitas vezes, os doentes mais fragilizados em termos
clínicos, humanos e sociais. Nem sempre corre tudo bem...
Também
temos a versão da consulta: em que vemos doentes da urgência ou internamento
para reavaliações ou estudos que possam ser feitos em ambulatório. Recebemos
doentes das várias especialidades e referenciados dos cuidados de saúde
primários.
Dependendo
dos hospitais, ainda podemos ter “hospitais de dia”, onde os doentes são acompanhados
de forma a cumprirem cuidados específicos, avaliações mais dirigidas ou a fazer
a toma de medicação intra-hospitalar sob vigilância médica.
Em que momento do seu
percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Tal
como todos os estudantes de Medicina, esperamos sempre que haja aquele momento
em que se torna evidente a nossa escolha futura. Comigo não foi assim tão claro
(e para a maioria dos meus colegas também não!). Gradualmente, conforme íamos
dando matérias e passando por estágios fui compreendendo o que gostava mais e
os temas com os quais me identificava menos. Como em tudo, as pessoas com quem nos
cruzamos, vão sendo fundamentais para nos apercebermos disso. Dessa forma vamos
analisando o que nos vemos a fazer no futuro... e não há especialidades sem
dificuldades ou que gostemos da mesma forma de tudo!
Quais as principais
razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta
decisão?
A
Medicina Interna tem uma coisa que me agrada muito: não é redutora. Essa
liberdade para ver o doente sobre vários ângulos, conseguir ajudar sobre várias
perspetivas e decisões e a possibilidade de “sub- diferenciações” em várias
vertentes, sempre me pareceu atrativa!
Quais são os principais
locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
Sendo
uma especialidade holística e hospitalar, a Medicina Interna tem sempre a
versão internamento, consulta e urgência. Nos CHUC ainda temos a possibilidade
de trabalharmos não só em equipas multidisciplinares (oncologia, hepatologia,
nutrição, diabetologia), como em acompanhar doentes em hospital de dia (medicina,
diabetologia, autoimunes).
Como descreveria o
ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/ enfermeiros/doentes nos
serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos
experientes?
O
CHUC é um centro hospitalar enorme, com uma equipa extremamente diversificada e
extensa. Nos serviços todos por onde passei (e tive oportunidade de passar por
todos os pólos) fui sempre bem recebida e acolhida. Nunca senti a falta de
apoio ou de acompanhamento que às vezes vemos os colegas referir, mas sei que
isso passa muito pelo interesse e expectativas individuais de cada um!
Se
forem pró-ativos e perguntarem, questionarem, desafiarem os mais velhos a vos
explicarem, até hoje, ainda não vi ninguém ser desiludido! Se oferecerem ajuda,
mostrarem interesse, perguntarem o que estão a ver, o que nos leva a tomar
decisões em detrimento de outros, vamos fazê-lo cada vez mais espontaneamente e
vão sendo incluídos na equipa como parte dela!
Lembrem-se
que na Medicina Interna, e com o tempo, vamos treinando o multitasking e como a
carga de trabalho é significativa, nem sempre nos lembramos que o que é
evidente para nós, não é para os colegas mais novos. Nesses casos, não tenham
medo: perguntem! Não é por mal, mesmo! Às vezes só nos esquecemos que todos já
fomos IACs e internos do 1º ano e que não sabíamos o que estavam os outros a fazer...
Há
um ponto fundamental que é frequente esquecemo-nos: nós somos todos humanos!
Também temos problemas pessoais, dores físicas e mentais, saudades de casa,
medos e dúvidas. Todos. E às vezes, no início dos internatos, achamos que somos
os únicos com problemas e esquecemos que os mais velhos, independente da idade,
já passaram por aí, pelos mesmos medos e dificuldades e muitas vezes ainda passam!
Há dias péssimos para todos... Mas a parte boa, é que podemos contar com os
colegas. Nem que seja para partilhar um chocolate no final de um dia mau, para
uma brincadeira, para um abraço... isso sim, faz um internato. E nisso, posso
dizer que fui e sou uma sortuda.
Considera que existe
idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade
de ensino?
Na
Medicina Interna, quase todas as valências têm idoneidade. A qualidade de
ensino no CHUC é imensa, sobretudo pela associação à FMUC que permite que haja
uma estratégia de ensino e formação de qualidade e com muitos anos de
experiência.
Existe, no seu
trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação
complementada noutro centro, …)?
Sim,
sem dúvida! Podemos fazer estágios com relativa facilidade, sobretudo porque
sendo uma área abrangente podemos escolher muitas áreas e perspetivas
diferentes, beneficiando da qualidade da sabedoria e experiência de outros
locais!
Como descreveria um dia
de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de
dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Um
dia habitual começa na enfermaria, cerca das 8h30-9h. São avaliados cada doente
internado e reavaliado o estado clínico. É necessário rever a tabela
terapêutica no sentido de se preparar a alta. Tentamos manter sempre uma
relação de entreajuda com os familiares e isso implica ir informando das evoluções
que vão ocorrendo e envolvendo-os no acompanhamento ao doente. São realizadas
notas de entrada completas para cada doente admitido, diários clínicos
eficientes, atualizados diariamente e delineados planos estruturados e
organizados que podem ter que envolver discussões clínicas com outras especialidades.
A nota de alta pode ser gradualmente construída, mas é sempre revista e
organizada no dia em que se decide que o doente reúne condições para regressar
ao domicílio.
Quando
há consultas, estas podem ser estruturadas de diversas formas: 1 ou mais dias
de consulta, 1 ou mais períodos de consulta. No meu local de trabalho, e ao
longo de internato, vamos aumentando progressivamente a carga de consulta que
temos. Inicialmente só acompanhamos os especialistas do serviço (de forma a
percorrermos todas as consultas que ocorrem no serviço), depois começamos
gradualmente a ser independentes, mas sempre acompanhados pelos colegas dos
gabinetes ao lado – orientador de especialidade incluído, para termos apoio em
qualquer dúvida e em qualquer momento. É habitual que se comece com 1 período
único de consulta (habitualmente de Medicina Interna) e chegamos ao final do internato
com 2-3 períodos de consulta (1 de Medicina e os restantes de subespecialidades
à escolha do interno em conjunto com as necessidades do serviço).
Considera que esta
especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E
relativamente à vida pessoal/familiar?
Como
em tudo e em todas as especialidades, se houver organização, dá tempo para
tudo! Para ter família, para ir ao ginásio, para ter hobbies, para ir de
férias... Dá sim, mesmo para a Medicina Interna!
Relativamente
à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as
restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão,
o que varia, ao longo dos anos de internato?
Todas
as especialidades têm que ter uma retaguarda para a formação científica e essa
nem sempre é exequível apenas no nosso horário de trabalho. Continua a ser
precisa dedicação, abdicar de alguns momentos pessoais e trabalhar fora de
horas. Os relatórios precisam de ser feitos, os trabalhos para congressos
vistos e revistos e os artigos precisam de ser escritos. Se algum deste
trabalho pode ser feito no hospital, a verdade a que a maioria não o é. Sim,
levamos trabalho para casa, temos que estudar doentes que nos dão luta, que têm
patologias menos frequentes, temos trabalhos para fazer, e sim, às vezes temos mais
do que um turno de urgência por semana. Às vezes vamos ter que sair de uma noite
de urgência e ter que ir rever os doentes da enfermaria porque o resto da
equipa não está, mas se a equipa for unida e sobretudo organizada, estará tudo
bem planeado do que é ou não é preciso fazer e consegue-se ser produtivo.
Durante
o internato, notei sempre que a carga de trabalho vai evoluindo. É progressiva
e muito natural.
Mas sim,
férias grandes e festas são sempre alturas mais caóticas e somos todos médicos,
todos sabemos que temos que ajudar e que há alturas mais problemáticas!
Como interna, como
é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
No
internato, tudo é gradual. Não se espera o mesmo de um interno de 1º ano no
primeiro mês ou de um interno no primeiro mês do 5º ano! As coisas são
naturalmente graduais e progressivas.
Ver/aprender,
fazer e ensinar. Vemos e aprendemos como os mais velhos fazem, depois tentamos inicialmente
com toda a supervisão, depois gradualmente com mais autonomia, até ao dia em
que conseguimos fazer sozinho e vamos avisar que já não precisamos de ajuda!
Quais as
subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta
escolha? Como acontece o processo?
Isto
vai depender muito do orientador e das chefias mas na maioria dos casos, dá
perfeitamente para ser ir escolhendo!
O
alinhamento de estágios é feito logo no início do internato. O meu conselho é
que ouçam os colegas mais velhos, com quem se identificam mais. Mas ouçam
várias pessoas! De diferentes hospitais e com diferentes realidades!
As
subespecialidades, por exemplo na consulta, podem ser um bocadinho mais
tendenciosas porque como se acompanha um orientador é natural que se siga os
mesmos passos e também vamos ficando mais rapidamente mais à vontade nas
subespecialidades que acompanhamos mais. Mas também depende do interno pedir
para acompanhar outros colegas mais velhos, acompanhar todas as consultas
disponíveis e, na hora de escolher, ver aquilo que mais gostou. É natural que
seja pedido aos internos de um serviço que ajudem a colmatar as falhas de
alguma área mais desfalcada, mas mesmo aí nenhuma área é estanque e podemos
pedir sempre para alterar... as vezes basta perguntar!
Como acontecem os
momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e
maiores dificuldades?
As
avaliações durante o meu internato foram sempre anuais, em fevereiro-março e
referentes ao ano anterior. Quando o tempo de permanência no serviço era
superior a 6 meses, era necessário a realização de um relatório descritivo das
atividades realizadas nesse período de tempo. No dia do exame, o relatório é discutido
com os avaliadores (definidos pelo serviço) e eram efetuadas perguntas teóricas
com aplicabilidade prática. Nos 2 últimos anos de internato, os exames simulam
o exame final de internato e a estrutura do mesmo: discussão curricular, parte
teórica e parte prática de discussão de um caso clínico após realização de
história clínica e exame físico completos, com um doente real da enfermaria.
Nos
estágios, foi me sempre pedida a apresentação de um tema teórico, nos serviços
de acolhimento e a realização de um relatório descritivo de atividades.
Qual diria ser a maior
dificuldade que encontra nesta especialidade?
A
maior dificuldade, na Medicina Interna, é manter o acompanhamento constante das
matérias e atualizações disponíveis. Ao ser uma especialidade generalista, há
essa componente de atualização científica constante que não pode ser descurada,
no entanto, o ritmo de publicações, cursos e atividades é alucinante e exige
uma imensa organização nesse sentido.
Quais os principais
fatores positivos na sua especialidade?
Para
mim, a maior virtude da Medicina Interna é não ser estanque. Claro que isso
também pode ser visto como uma dificuldade na hora de estudar para exames e na
quantidade de cursos e trabalhos para realizar, mas essa liberdade, para mim, é
claramente o maior ponto forte da medicina.
Como descreveria a sua
especialidade em relação à possibilidade de:
-
Progressão de carreira: É preciso lembrar que a Medicina Interna é uma
especialidade com muita gente, a progressão de carreira é possível e há várias
trajetórias possíveis, em várias áreas.
-
Enveredar pela carreira investigacional: A atualização científica na Medicina
(e respondendo já ao ponto seguinte), é constante e muito diversificada. Todas
as áreas nas quais a Medicina Interna se pode envolver há uma grande avaliação
de novas estratégias e na revisão teórica e prática de conceitos.
-
Constante inovação científica;
-
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público: Na maioria dos
hospitais não há qualquer entrave a trabalhar em simultâneo no sector privado.
A única coisa fundamental é que as duas não se confundam nem se sobreponham!
Claro que para isso, obriga a uma gestão de tempo muito rigorosa e a abdicar de
períodos que poderiam ser de descanso ou de estudo.
Escolhia novamente esta
especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as
principais surpresas?
Eu
não escolhi Medicina Interna de forma leviana. Correspondeu ao que eu tinha
previsto e planeado e nesse sentido, voltaria a escolher a mesma especialidade.
De
vez em quando, agora que terminei a especialidade, pergunto-me isso: “teria
escolhido outra coisa?”. A resposta é invariavelmente: não!
Mas
sei que há pessoas que escolhem Medicina Interna com menos convicção (por
muitos motivos) e que apanham “sustos”. A Medicina Interna é uma especialidade
difícil e independente. É preciso vir a contar com isso!
Diria que é necessário
mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta
especialidade?
Tenho
dúvidas que sejam coisas que possam existir em separado. A Medicina é, como
sempre nos disseram, uma arte! Mas nenhuma arte pode dispensar a dedicação e o
estudo constante!
Tem alguma consideração
importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Não
desvalorizem a Medicina Interna, isso é uma ideia há muito ultrapassada e com
muitas provas dadas. E seja qual for a especialidade, tirem uns minutos para
pensar se acham que se vêm a fazer isto a vida toda. Todos fizemos estágios,
pensam nos quais se identificaram mais e qual foi o motivo para isso.
Texto redigido com a
ajuda de Joana Cascais, interna de Medicina Interna no CHUC
0 Comentários