Tecnologia em Tempos de Pandemia

Percorremos mundos pelos ecrãs dos nossos telemóveis, dos nossos computadores. Entramos em casa dos nossos amigos sem precisar de pedir permissão, ouvimos o som das televisões uns dos outros; aprendemos aquilo que deveria ser ensinado num auditório com os lugares cheios, através dos nossos ecrãs. Ouvimos histórias, contamos histórias. Estudamos, aprendemos, continuamos. Percorremos quilómetros sem sair do mesmo sítio e mantemo-nos informados. É importante que nos mantenhamos informados apenas durante o tempo necessário, é importante desligar e desconectar sempre que possível, sempre que necessário, mas é também importante agradecer tudo aquilo que a tecnologia nos proporciona nesta altura de tantas dificuldades. Milhares de pessoas estão em teletrabalho e continuam com motivação diária para cumprir com as suas tarefas. Os alunos podem continuar a aprender, os professores podem continuar a ensinar, o grupo de amigos pode continuar a cantar os parabéns, porque mesmo que estejamos espalhados pelo mundo, ali, naquele pequeno instante, estamos onde deveríamos estar - juntos. E sentimos essa proximidade, se não sentimos! Creio que é muito em parte graças ao desenvolvimento tecnológico, às redes sociais, às aplicações e a todos aqueles que diariamente partilham os seus interesses e as suas motivações, que isto ainda não descambou. No dia em que ficarmos sem internet, que neste momento é o maior meio de comunicação a nível mundial, aí sim, vamos sentir verdadeiramente o isolamento social. Por agora, a coisa vai-se aguentando. Uma lágrima aqui e ali, mas nada que um sorriso forte numa tela não faça um coração derreter e não solte um sorriso. Por agora, a coisa vai-se aguentado.
Trocamos os nossos locais de trabalho pela nossa mesa da sala, vestimos a camisa e mantemos a calça de fato de treino, acordamos em cima da hora da reunião, desligamos os microfones e ligamos a televisão. É tao fácil decidir aquilo que nos interessa e aquilo que nos desinteressa. Estamos verdadeiramente concentrados no que queremos estar. Ouvimos o que queremos ouvir. É fácil trabalhar em teletrabalho. Mas é fácil cair no esquecimento. Importa continuar a manter presente a ideia de que isto continua a ser o nosso sustento, que mais não seja, psicológico.
É fácil trabalhar em teletrabalho porque temos meios adequados para isso. O que faríamos sem a comunicação social de que tanto nos queixamos, sem as páginas que partilham treinos diários, receitas novas, motivações tão diferentes umas das outras que, com certeza, lá encontraremos a nossa; o que faríamos sem o telefonema do amigo e a videochamada da família que está longe? É assim que encurtamos quilómetros em tempos de pandemia, sempre foi assim só que, antes disto, não compreendíamos a importância porque estávamos à distância de uma viagem, por mais longa que fosse. Hoje estamos à distância de uma cura, que teima em não querer chegar. Os aeroportos estão fechados e o abraço de reencontro encontra-se, neste momento, sobre os nossos olhos, dentro dos nossos computadores.
E desses mesmo ecrãs, das nossas televisões, dos nossos telemóveis, sai um mundo e, a parte mais bonita, é que sai o mundo que quisermos ver, quando quisermos ver. É importante centralizar o separador naquilo que nos faz bem, que nos mantém ocupados, que nos mantém em equilíbrio.
É importante centralizar porque, afinal, estamos todos ligados. Continuamos todos ligados.
Em tempos de pandemia a tecnologia mostrou-se numa das nossas melhores amigas, que nos leva a viagens sem precisarmos de fazer malas, que nos traz as pessoas de quem gostamos sem precisarmos de correr até elas, por muito que queiramos esse dia de novo. A tecnologia trouxe-nos tudo aquilo que não suportaríamos sem ela – a proximidade, a conexão. Estamos ligados e, muitos de nós, estamos ainda mais ligados, agora que fomos obrigados a conectar de uma forma tão diferente que, a meu ver, é tão especial e continua a dizer tanto sobre aquilo que vai nos nossos corações.
Em tempos de pandemia a tecnologia tornou-se numa das nossas melhores amigas para que, assim, continuemos próximos de todos aqueles que são verdadeiramente nossos. Porque, no final, é apenas isso que importa: continuarmos juntos, mesmo que não nos possamos tocar.
Francisca Pinho, 5º ano

Quiz Month #1 - Cirurgia Geral

Se não tiveste oportunidade de responder ao primeiro caso do nosso "Quiz Month", dinamizado pelo NEM/AAC e In4Med no âmbito do Doctor, Crack My Case! para que não percas o jeito durante a tua quarentena, podes revê-lo aqui no site da aNEMia sempre que quiseres!

Este caso clínico foi realizado pelo Prof. Dr. Henrique Alexandrino.




Epopeia dos Tempos Modernos

Saio à rua. O sol incide-me na face com a crueza imposta pelas primeiras horas da tarde e a pele da fronte retesa-se com a estranheza desta interação já tão fora do habitual. Ergo a mão esquerda, que me desafoga a vista, e estaco por uns segundos a saborear o fluxo luminoso que se esgueira por entre os dedos e que me acaricia as falanges com o deleite próprio dos amantes reencontrados. Na mão direita carrego o saco do lixo: despojos de uma vida feita de retalhos vagamente unidos pela cadência rotineira dos dias sempre iguais. Abro as hostilidades com o primeiro passo e prossigo a caminhar com a falsa valentia que me encrava o receio na glote. A rua está desolada. A luz tórrida remete tudo à minha volta ao silêncio e nem o rumorejar fino das folhas se atreve a soar. Os meus passos, ressoando no solo granuloso da berma da estrada, perturbam todo este cenário e infundem em mim a desconcertante impressão de estar a pisar solo inimigo – um inimigo invisível que exatamente por isso em todo o lado se vê. Avisto ao fundo o contentor e os meus passos ato contínuo se apressam, rumando no seu encalce e eu seguindo por arrasto. Os muros somem-se vertiginosos a meu lado, os limites das casas esfumam-se, o espaço acerca-se e a visão afunila tendo em vista só e apenas aquele deslocado objeto de cor verde suja. Detenho-me um instante e aprecio as suas feições disformes, as rodas em desalinho carcomidas de ferrugem, a postura derreada de mendigo sem esperança e a aba da tampa com a habitual gosma sarrenta conspurcada pelas mãos do mundo – tampa essa que se afigura hoje mais corrompida ainda e que num repente se vê assolada por mais manchas pestilentas e repulsivas, brotando em toda a superfície, assomando da minha mente para se estenderem por toda a parte – a mente quando se esforça verga o real ao seu intento, mais ainda se é sequestra do medo.
Abro a tampa com a mão esquerda, uma névoa putrefacta emprenha-me as narinas, o saco ergue-se a custo da mão direita e este desenha um arco por sobre a minha cabeça caindo desamparado sobre os seus semelhantes, desprovido de charme e graça, posando desleixadamente sobre a massa sobrante de outras casas. Deixo cair a tampa com estrépito. Contemplo uma vez mais este objeto deselegante e tosco e sinto- me inundado por uma profunda empatia: depositário de memórias – retalhos de jantares passados em família, a nabiça e a cenoura empregues na sopa de carinho maternal, a cebola do refugado inundando a casa de aroma a aconchego e calma, o morango desfolhado, a batata descascada, a laranja posta a nu, um sorriso, uma garfada que nos transporta para a nostalgia de uma infância perdida no tempo e que é de novo resgatada – tudo isto amalgamado agora num entulho amorfo que apelidamos de lixo, sobras, despojos, um sobejo, nada: pacientemente aguardam a chegada do homem do lixo, ou recolector de memórias, que as irá encaminhar ao seu eterno descanso. Um ardor na mão esquerda arrebata-me de rompante para fora dos meus pensamentos. Dou meia volta e prossigo no mesmo caminho, por passos diferentes retomando a casa.
As pernas bambeiam-me, caminho à banda pelo peso da mão devassada que agora sinto em fogo: fagulhas chispando da ponta dos dedos, contraturas e pruridos irrompendo da carne, nevralgias faiscando e todo o tipo de cáusticos e emplastros corrosivos que agora levo comigo e que vão presos à mão esquerda. Surge-me um desconforto no sobrolho direito (Não coces), já estou quase a chegar à porta e sinto o coração a bater na boca, novamente o sobrolho (Não coces). Pego na chave com a mão direita (Toquei na tampa com a mão esquerda?), introduzo-a na fechadura e dou uma volta, alegrando-me com o retinir concordante das engrenagens que me concedem a entrada. Escuso as habituais saudações e vou direto ao quarto de banho.
Abro a torneira com a mão direita (Sim, foi com a mão esquerda que lhe toquei), mergulho mãos ambas no fluxo retemperador da água canalizada, com a mão direita arranco uma porção de sabão ao doseador e inicio a dança concertada dos dedos. As mãos enlaçam-se uma na outra e entrançam-se numa orgia de espuma, o aroma perfumado de orquídeas embebeda-me os sentidos, requebra-me o olhar e o peito vai, pouco a pouco, deixando escapar o ar que havia feito refém, suspirando de alívio e de prazer. Abandono a divisão com os humores novamente em equilíbrio, sentindo-me pleno e em sintonia com estas paredes intocadas e o afago asséptico do ar que respiro. Dirijo-me à sala e deito-me no sofá. Sinto-me em paz e deixo-me embalar pelo banho reconfortante dos estofos higienizados. Fecho os olhos finalmente rendido à segurança do lar, e deixo desfiar a epopeia dos sonhos que agora acontece na parte de dentro das minhas pálpebras.
Samuel Tavares