Escrita Criativa - Ana Sousa

Aqui, agora. Final do dia. Fugaz novembro, terceiro dia da semana.
Eles estão sentados, despertos. Ouvem-se vozes abafadas pela luz incandescente. Não há brisa nem dia, mas um pedaço de noite fria lá corre pela janela. Esgota-se nas palavras.
Fechados numa sala, escutávamos o silêncio dos objetos. Não éramos muitos. Perdidas já, havia mesas, cadeiras e um quadro em branco que parecia preencher uma divisão quase vazia. Ou quase cheia.
À minha frente, uma rapariga sorridente e atenta, fixava um ponto no horizonte que me trespassava. Cabelo cor de mel, com um gancho em forma de borboleta dourada como que a querer levantar voo e ser livre.
Sinto-me pequena. Inerte, como se os meus pés estivessem suspensos no ar. Impera a presença de olhares sobre mim, como um bisturi que me lacera. Olhares que não foram convidados.
A pessoa que está à minha frente só pode ver o que não posso esconder, e isso incomoda. Mas também já não importa. Já só vejo chamas e sufoco, tudo à minha volta entra em combustão. Imagino as cinzas do que virá depois. Depois de me ir. Daqui, de mim. De todos. Tenho fósforos no bolso e quase que queimam.
E vou voar, como um corpo que flutua na água.
A médica olhava a doente de forma minuciosa e apenas a mesa as separava. Sabia que a sua decisão ia definir tudo dali para a frente. Parecia bem, estável. O último surto psicótico já quase havia sido esquecido. Aparentemente serena, a doente mexia na borboleta dourada que adornava o seu cabelo, tentava esconder as suas intenções. Mal podia esperar por ser livre, deixar os comprimidos, as conversas dissimuladas. Iria cometer a sua última (in)sanidade. Como (in)sana que era.
Como se o mundo fosse ressurgir.

Ana Sousa, 2º ano

Efeito Borboleta

Depois de sair da crisálida, a borboleta possui ainda pequenas e macias asas antes destas assumirem a sua verdadeira forma e endurecerem. Descobrem depois a leveza do primeiro voo e, nessa inocência, voam simplesmente…
Em momento algum nos é dito de que são feitas as coisas ou como são feitas. Vamos observando e experimentando aquilo que outros observaram e experimentaram e, dessa forma, vamos decidindo quais os atalhos que queremos percorrer. É um caminho fácil? Às vezes é! Umas vezes, tem apenas algumas facilidades. Outras, é “assim-assim” e em casos menos raros do que o que se possa imaginar, é um “assim- assim” que se prolonga indeterminadamente até não sabermos mais qual o princípio da questão. É verdade que aos 18 anos (ou por volta disso), temos de fazer escolhas. Importantes, assim o dizem. Depois, é só depositar todos os nossos sonhos, esperanças e capacidades nessas escolhas e esperar que o resto “venha por acréscimo”. Mas nem sempre esse acréscimo acrescenta nem tão pouco sabemos se nos vamos aperceber disso tardia ou prematuramente. Suponhamos que faz tudo parte do processo complexo que é a transformação de um jovem adolescente (des)preocupado num jovem adulto consciencioconformado, passo a expressão.
Ora, todo este discurso motivacional e retórico em forma de desabafo serviu para finalmente iniciarmos o tema central desta pseudocrónica: Concurso de Medicina para Licenciados. Alguns devem estar a pensar… “Isso existe?”… “É um tipo de medicina alternativa?”… “É uma maneira mais fácil de entrar em medicina?”… “É uma realidade disparatada perante a problemática das vagas para a especialidade nos dias de hoje?”
Sim. Não. Depende do ponto de vista. Disparate não creio, complicado talvez. Vamos então conversar.
Ingressar no Mestrado Integrado em Medicina nem sempre é fácil e as histórias divergem. Se, por um lado, temos aqueles que sempre quiseram entrar, conseguindo ou não, temos, numa outra esfera, aqueles que se mantiveram num limbo de escolhas polivalentes e que acabaram por deixar a hipótese de lado por diferentes razões. Estes últimos acabam por navegar sob efeito de outros ventos, muitas vezes sem saberem que acabarão por chegar, na proa, ao mesmo porto e com uma bagagem a transbordar.
Licenciados, Mestres, Doutorados (ou mais, porque o céu é o limite), muitos deles tentam a sua sorte neste concurso que vai passando despercebido a quem de nada disto percebe.
Na verdade, é um concurso que faz lembrar o ingresso no ensino médico, por exemplo, dos EUA. Lá, não é possível iniciar o curso de medicina logo após o ensino secundário e tem de haver a conclusão prévia de uma licenciatura noutra área (que tem de incluir as disciplinas pré-requisito para a posterior candidatura).
Anualmente, todas as Escolas Médicas portuguesas abrem vagas por este concurso para o Mestrado Integrado em Medicina, e estas podem ser preenchidas até 15% do numerus clausus previsto pelo concurso regular de acesso, segundo a legislação atual. Contudo, a tipologia do concurso varia de faculdade para faculdade. Foquemo-nos apenas no regulamento imposto pela FMUC.
Na candidatura, há que ter atenção aos procedimentos e prazos do regulamento, para que nada falhe.

QUEM É ADMITIDO A CONCURSO?

Os candidatos terão de ser titulares de uma licenciatura ou mestrado integrado nacional, em áreas afim da Medicina (Biologia, Bioquímica, Ciências da Nutrição, Ciências do Desporto, Ciências Farmacêuticas, Cursos de Tecnologia da Saúde, Enfermagem, Engenharia Biomédica, Medicina Dentária, Medicina Veterinária e Psicologia) e satisfazer o pré-requisito fixado para acesso ao curso no respetivo ano letivo (este último ponto é exatamente igual ao contingente normal).
Não será novidade dizer que a candidatura está sujeita a um emolumento no valor de 100€ (relativamente ao panorama nacional, até é simpático por ser dos menos dispendiosos) e que os devidos documentos (formulário de candidatura, comprovativo de pagamento, BI/CC, documentos oficiais comprovativos da conclusão do ensino secundário e de licenciatura ou mestrado integrado) têm obrigatoriamente de ser apresentados e as candidaturas que não cumpram qualquer um dos requisitos são liminarmente indeferidas pelo júri competente.

COMO TUDO SE PROCESSA?

O concurso é, antes de mais, dividido em duas fases.
Na 1ª fase, são aplicados critérios de seriação que se prendem com três etapas fundamentais que são, individualmente, cotadas para 20 pontos, num total de 60 pontos: idade (até aos 29 anos, não há penalização e são atribuídos 20 pontos, começando a ser descontados pontos a partir dessa idade) – e vocês dizem “Fácil!”, ao passo que eu digo “Olhem que às vezes este critério pode estragar os planos a muito boa gente!” –, média final do Ensino Secundário ou equivalente (numa escala de 20, a média arredondada às unidades corresponde à pontuação respetiva) – “Pois é, para quem pensa que as médias não interessam… interessam” – e, por último, média da licenciatura ou mestrado integrado – “Estão a ver como as médias continuam a interessar? Duplamente!”. Perante isto, feitas as contas de “sumir”, apenas 48 pessoas (os tais 15% das vagas mais 10) das centenas que costumam concorrer, vão estar do lado certo da matemática e vão passar à 2ª fase.
Esta última é talvez a mais desafiante e que deveria existir em todos os concursos para cursos que implicam relacionamento interpessoal, como é o caso de medicina: a entrevista. Tem a curta duração de 15 minutos, três atentos jurados e embala o projeto de um sonho. Na 2ª fase, o máximo de candidatos que podem ser admitidos não pode ser superior às 38 vagas disponíveis (mas mesmo estas 38 vagas podem não ser todas preenchidas, tudo vai depender dos candidatos a concurso e do seu desempenho na entrevista).
A entrevista varia entre candidatos, e procura avaliar o mesmo de uma forma geral e, simultaneamente, personalizada. A postura, a vontade e garra demonstradas para frequentar o curso de medicina são importantes, mas também são avaliados os atributos/valores que o corpo docente júri considera essenciais num futuro médico. A lista é extensa: empatia, discernimento, perseverança, argumentação sobre questões atuais, aspirações pessoais/profissionais, entre outros temas “fora da caixa” (o que talvez seja uma maneira eficaz de alavancar ou enterrar o candidato, já que a diferença entre quem entra ou não está nos detalhes).
Para os leitores que possam questionar-se: “Como se conhece alguém em 15 minutos? É impossível, até porque há muitos fatores externos que podem influenciar!” Tem razão, caro leitor. Não é uma tarefa fácil (daí apenas cerca de 20 pessoas terem entrado nos últimos anos), mas acredite que em 15 minutos de  pressão, eles vão testar o candidato até verem onde ele pode ir, esperando que o candidato se teste a si próprio.
A pressão pode pairar de várias formas: uma conversa informal, um questionário em que cada jurado desempenha o papel de “bom”, “mau” e “moderador”, uma “reunião” bem ao estilo tradicional de entrevista de emprego… É impossível saber o que vai suceder a cada um. Os candidatos devem mostrar ter disponibilidade total para a demanda exigente que o curso representa, e terem mais “vida” para lá do estudo é importante. Aptidões/interesses noutras áreas são valorizados, assim como motivações/opiniões pessoais, atividades extracurriculares socioculturais, percurso académico e/ou profissional… Acho que já me fiz entender.
Depois, é só esperar ansiosamente pela lista dos candidatos admitidos e ter fé.
Há que contextualizar este concurso no cenário atual. “Um disparate”, pensam muitos, face à realidade da falta de vagas para a especialidade que se tem verificado. Diria que é uma forma diferente de ingressar em medicina, mas não que é mais ou menos justa. Tem vantagens e desvantagens, como em tudo na vida, no entanto, não me cabe fazer juízos de valor acerca da abolição do mesmo. Estaria a dar a face à hipocrisia.
Mas, calma, temos pés bem assentes no chão e está claro que os problemas existem e não nos passam simplesmente ao lado (não a toda a gente), e são preocupantes. Vamos aos factos:
- Há uma distribuição anormal de médicos no país, sendo muitos deles atraídos para o setor privado, saindo assim do Serviço Nacional de Saúde (SNS);
- SNS está carenciado em médicos especialistas;
- Redução das vagas para a especialidade;
- Reitera-se que o numerus clausus de vagas em medicina é excessivo, o que não contribui favoravelmente para uma eficiente formação médica e põe o futuro dos jovens estudantes na corda bamba;
- Recém-formados portugueses que estudaram no estrangeiro, voltam com melhores médias para tirar especialidade;
- Caos instalado.
Estão a ver? Escrevo meia dúzia de premissas e rapidamente quem se esforça por entender esta trapalhada conclui: é uma questão política. E o panorama não vai melhorar (nisto, todos devemos concordar). Devido à falta de planificação de recursos humanos e pela dificuldade em atuar perante os obstáculos.
A existir, a redução das vagas no contingente normal repercutir-se-á automaticamente neste concurso. Ultimamente, não têm vindo a ser todas preenchidas (na FMUC) e isso já pode ser uma forma de restrição.
Pode acontecer que os licenciados sejam alvo de algumas críticas relativamente aos alunos do contingente geral, sendo “acusados de ingressarem com menos mérito”. Ao contrário do que já ouvi, estes licenciados podem ser tão brilhantes como os seus pares. Terem entrado por esta via não implica terem de ser rotulados como “pessoas cuja média não foi suficiente”. Essa ideia não deve ser generalizada como um dogma, porque a verdade é multifacetada. Isso pode ser efetivamente verdade em alguns casos, mas não noutros e, querendo optar por essa afirmação enviesada, ficam por analisar outras características tão importantes que não vêm anexadas às centésimas de uma média (do ensino secundário) final.
O percurso de vida de cada um, inclusive de um licenciado (ou mais graduado), como um origami, pode ser moldado sem nunca, porém, lhe serem apagados os vincos da sua história passada. Por isso… Voltar atrás para seguir em frente? Porque não? Se já deram o primeiro passo, que é optar por esta via (o que já demonstra muita capacidade de resiliência), só resta continuar. Vão ficar espantados com as repercussões que esse sonho poderá ter daí em diante, se o souberem agarrar.

Sublime, a borboleta vagueia na brisa estival exibindo o brilho na parte superior das suas asas. Numa elegância, dobram, desdobram e poisam gentilmente. Saberão elas da sua culpa na tempestade, por terem simplesmente voado?
Ana Sousa, 2º ano

Escrita Criativa - Pedro Silva

As canetas deslizam sobre o papel branco que contrasta com o céu lá fora. O dia está
a terminar com a folha rasurada e à espera de ser completada como pele cravada de tatuagens.
A palestra decorria numa sala carregada de recordações das aulas de medicina. Eu estava rodeado de pessoas fazendo relembrar alguns episódios até talvez marcantes na minha vida. A sala tinha a mente carregada.
Pequena e interessada, a rapariga ávida de curiosidade estava muito concentrada e compenetrada no discurso da palestrante. Percebia-se o entusiasmo incorporado por ela na sessão. Ela tinha vindo de propósito de Lisboa.
Eu sentia-me observada e fragmentada por um rapaz com aspeto descuidado. Queria desaparecer, fugir, destruir tudo à minha volta para que ele não me perseguisse. Repulsa é a palavra que sinto neste momento. Continuo a escrever condicionada por uma mão forte que se chama medo.
A sessão caminha a passos largos do fim, o desconforto da rapariga parece que está a desvanecer-se. O rapaz tirou os olhos dela e começou a escrever, a escrever, … tanto que a folha se encontrava totalmente cravejada de palavras. Finalmente o texto ganhava corpo.
O fim chegou. Cada um foi-se embora para as suas vidas, para o seu núcleo, sem mais se cruzarem: o rapaz e a rapariga. É o tempo que continua a andar até que estes fetos atinjam o final do tempo de gestação da vida.


              Pedro Silva, escrito no Workshop de Escrita Criativa