1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #9 – Neonatologia

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
Ser médico neonatologista significa ser pediatra de formação e ter-se dedicado à Pediatria dos mais pequenitos. Implica, portanto: escolher Pediatria como especialidade médica no Internato do Ano Comum, fazer 5 anos de formação em Pediatria (com as valências de Neonatologia e Intensivos Neonatais) e depois do exame final de especialidade, escolher um hospital em que se possa fazer diferenciação em Neonatologia (subespecialidade da Pediatria).
A Neonatologia é a área da Pediatria que trata os recém-nascidos (RN) de termo e RN prematuros (PT).
Somos responsáveis pelos RN de termo, saudáveis, com boa adaptação à vida extrauterina, que ficam em alojamento conjunto com a mãe depois do nascimento. Mas somos também responsáveis pelos RN doentes e RN prematuros que necessitam de cuidados diferenciados, intermédios ou de intensivos, adaptados a cada situação. Nas maternidades da zona centro, estamos presentes em todos os partos.

Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Sempre senti interesse pela Pediatria! Cliché! Mas quero ser pediatra desde muito cedo. O interesse pela Neonatologia surgiu já na especialidade de Pediatria, durante os estágios de Neonatologia (2º ano de internato) e Cuidados Intensivos Neonatais (4º ano de internato). De tal forma que, mesmo fora dos períodos de estágios, tentei sempre que possível, manter contacto com a Neonatologia e de forma, voluntária, continuava a fazer urgências na maternidade.

Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
A Neonatologia tem a parte boa do RN de termo, muito desejado, que nasce sem qualquer patologia, com boa adaptação à vida extrauterina. Simultaneamente somos chamados a intervir nos RN de termo com patologia com diagnóstico pré-natal (com possibilidade de preparação e planeamento) ou diagnóstico ao nascimento e com necessidade de intervenção e orientação. Acompanha-se também pelo desafio da prematuridade (muitas vezes inesperada) com possibilidade de intervir e ajudar estes pequenitos a sobreviver. Os internamentos dos prematuros são internamentos prolongados, cheios de desafio com as várias complicações da prematuridade, que nos trazem muita satisfação quando conseguimos ajudar.

Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
A equipa da neonatologia da minha maternidade divide o seu trabalho diário, de forma rotativa, em dois internamentos diferentes: enfermaria de puérperas e RN (RN termo saudáveis) e unidade de cuidados intensivos neonatais (RN doente e RN prematuro). Tenho também um período de consulta semanal – consulta de follow-up neurológico – onde seguimos grande prematuros (abaixo das 32S ou PN < 1500gr) e/ou RN termo ou PT com risco de lesão neurológica. Trata-se de uma consulta de Pediatria onde incidimos principalmente nas complicações inerentes à prematuridade e avaliação do desenvolvimento nos 2/3 primeiros anos de vida.
Existem consultas com objetivos diferentes na maternidade. Cada um de nós dedica-se a uma área de interesse – risco psicossocial, infeções congénitas, gémeos, Patologia renal, …

Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
Trata-se de um serviço com bom ambiente e espírito de entreajuda e trabalho de equipa entre médicos das diferentes especialidades (neonatologia, obstetrícia e anestesia), médicos internos e enfermeiros. É um bom serviço para se trabalhar diariamente.

Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Fiz tudo cá em Coimbra – Faculdade, Internato do Ano Comum e especialidade de Pediatria. Do ponto de vista de Internato, o Hospital Pediátrico de Coimbra permite uma formação sólida em Pediatria Geral e um contacto precoce com as subespecialidades e patologia rara. Nos primeiros anos de internato, quase que nos perdemos um bocadinho na patologia rara, enquanto ainda estamos a tentar aprender as bases da Pediatria Geral. Do ponto de vista de Neonatologia, durante o internato, as vezes sentimos que “pomos pouco a mão na massa”. Somos muito protegidos principalmente nos prematuros, pela especificidade inerente à reanimação nestes RN. Tudo isso fica diluído após terminar a especialidade e integrando a equipa de Neonatologia, em que os procedimentos sempre que possíveis ficam a nossa cargo para “ganharmos” mão. Sinto que recebi uma boa formação.

Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Existe e é aconselhado. A dificuldade as vezes prende-se com o facto de o serviço ser pequeno e precisar muito de nós para a atividade do dia-a-dia e para a escala de urgência. Eu fiz a formação da Neonatologia na minha maternidade, mas existe sempre a possibilidade de fazer formação / ciclo de estudos especiais em Neonatologia (na totalidade ou numa área em especifica) noutros hospitais.

Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Como expliquei acima tenho uma manhã semanal de consulta e nos restantes dias estou na enfermaria de puérperas e RN ou na UCIN, acompanhado os RN internados (vamos rodando pelos dois internamentos a cada 6 meses). Sou também responsável pela realização de ecografia transfontanelar e ecocardíaca funcional.
Tenho um horário de 40 horas semanais, sendo que pelo menos 12h são de urgência. As nossas urgências começam as 13h da tarde e tem sempre 2 elementos na escala (2 especialistas em neonatologia ou 1 especialista e 1 interno de Pediatria). No horário de urgência passamos a ser responsáveis por todos os RN da maternidade: internados na enfermaria de puérperas e RN e na UCIN e pela sala de partos.
A especialidade de Neonatologia caracteriza-se por alguma imprevisibilidade. A maioria dos partos prematuros são inesperados e nos dias em que nascem prematuros ou RN doentes, podemos passar várias horas seguidas de volta deles (entre entubações, cateterismo, e outros procedimentos mais ou menos invasivos).

Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
A equipa da maternidade onde trabalho é uma equipa com poucos elementos e envelhecida, o que traz vários turnos de urgência… A nível nacional, é o que acontece em muitas maternidades do país – poucos neonatologistas e pouca renovação da equipa. Mas é o que acontece também noutras especialidades médicas e cirúrgicas neste momento.
Até a data, julgo que dá para conciliar com hobbies e a vida pessoal e familiar! Mas é uma especialidade que tem urgências de noite e ao fim-de-semana, ao contrário de outras!

Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
Já não sou interna e as minhas respostas referem-se ao período de neonatologia, ou seja, já no pós- internato. Pelo que expliquei acima, trata-se de um serviço pequeno logo bancos de urgência extras. E claro que na fase de formação de Neonatologia, dediquei muitas horas ao serviço. Tinha de tentar aproveitar quando nasciam prematuros e patologias raras para treinar técnicas. Estes casos nem sempre nascem quando estamos no serviço e por isso, às vezes, é preciso estar disponível e ficar de chamada e vir de casa até ganhar treino!

Como interno, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
A Neonatologia é uma área muito específica principalmente quando se trata de um prematuro de 24 ou 25 semanas. Quando perceberam o meu interesse mesmo durante o internato, deixaram-me “por a mão na massa”, mas nos maiores. Temos sempre “as costas quentes” e ainda bem quando se trata de meninos tão pequeninos.
Durante o internato, temos de ser treinados enquanto pediatras, a receber RN de termo que precisam de reanimação na sala de partos, orientar as principais patologias do RN e orientar RN PT >32S, estes sim que podem nascer em qualquer hospital (os PT <32S só nascerão em maternidades de apoio perinatal diferenciado). Nestas situações, sinto que recebi uma formação adequada durante o internato. O treino nos prematuros mais pequenos adquiri já enquanto especialista quando me dediquei à área da Neonatologia.

Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
A Neonatologia é já uma subespecialidade da Pediatria. A liberdade não é total. Temos de ser colocados num hospital em que exista interesse na nossa diferenciação nesta área e depois da autorização, concorrer a concursos nacionais para ciclo de estudos especiais.

Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
A subespecialidade de Neonatologia pode ser adquirida por ciclo de estudos especiais ou solicitada equivalência após 2 anos de treino num serviço com apoio perinatal diferenciado depois de entregar CV que será avaliado por um grupo de peritos.

Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
A abordagem da grande prematuridade e do limite da viabilidade é um dos maiores desafios. É o que nos dá também maior gozo no nosso dia-a-dia, principalmente quando corre tudo pelo melhor, mas é a parte sem dúvida mais difícil e desafiante.

Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
O que conseguimos fazer com os avanços da neonatologia…manter e suportar RN prematuros de 24/25 semanas, cada vez com menos sequelas, é sem dúvida um dos aspectos mais importantes e positivos da nossa especialidade!

Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão de carreira – A carreira médica está “paradinha” em qualquer especialidade neste momento…
Enveredar pela carreira investigacional – A investigação em Portugal é com muito boa vontade de todos nós e nos grandes centros, mas não diria que impossível.
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público – Como neonatologista pode trabalhar no sector público e privado (Lisboa e Porto têm maternidades privadas com unidades de cuidados intensivos que recebem prematuros pelo menos a partir das 32-34S). Pode também fazer consulta de pediatria na privada (somos pediatras na nossa formação de base).

Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Escolheria outra vez por todos os motivos acima apresentados. É um desafio diário, mas muito compensador. Quem gosta de técnica, intensivos, de “por a mão na massa” e pequenitos, gosta de neonatologia!

Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
É preciso gostar de adrenalina. As algoritmos de reanimação e as técnicas treinam-se!

Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Não se esqueçam que a Neonatologia é uma subespecialidade da Pediatria. Primeiro é preciso ser Pediatra!

Texto redigido com a ajuda da Dra. Muriel Ferreira, Médica Neonatologista

1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #8 – Cardiologia

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
Cardiologia é uma especialidade com a qual muito me identifico, com a sua componente clínica, de intervenção (seja tecnicamente ou em saúde pública), educação e investigação, acompanhado por uma vontade de querer mais, mas com qualidade.

Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
A primeira vez que considerei realmente a especialidade de Cardiologia foi na aula de apresentação da cadeira de Cardiologia pelo Professor Lino Gonçalves. No seu discurso, o Professor apresentou a cadeira/especialidade como desafiante, inovadora, mas transversal a uma grande população de doentes. Achei mesmo inspirador!

Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
Acho que além de considerar extremamente desafiante, é uma especialidade com imensas áreas de intervenção: cardiologia de intervenção, imagiologia, saúde pública, clínica e investigacional.

Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
Como interno de especialidade, a minha rotina diária envolve o internamento de doentes. No entanto, ao longo dos diferentes estágios, vamos passando no local de realização de ecocardiografia, sala de hemodinâmica, sala de pacemaker, etc.

Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes? 
Como em todos os locais existem colegas de trabalho com mais ou menos disponibilidade para ajudar.

Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Sim. Muito boa! Há especialistas com muita experiência em todas as áreas do internato.

Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Sim. Todos os internos têm oportunidade de fazer o estágio no estrangeiro, organizado pelo Prof. Lino.

Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Sem dúvida! Contudo, é preciso uma boa gestão de tempo. Trabalhar quando é para trabalhar e divertir-me quando é altura para isso. Dito isto, por vezes pode ser mais fácil falar do que realmente colocar isto em prática, mas é algo que se vai ganhando prática.

Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
Em Coimbra, existe uma boa política que protege os internos: não fazemos noites até ao 5º ano, temos urgências extras que não eram pagas até este ano, mas vai ser alterado ainda este ano. A grande alteração é quando se passa para o 5º ano (último ano) e somos considerados já como especialistas. A meu ver existe uma gradual passagem de responsabilidade.

Como interno, como é o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Ainda me encontro no início do internato para responder pormenorizadamente a esta pergunta.

Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
Acontecem anualmente. Envolve:
● Avaliação curricular
● Realização de colheita de história clínica (2-3 vezes ao longo do internato)
● Avaliação 360 graus (comissão que envolve com o Diretor de Serviço, todos os tutores e o interno mais graduado) onde se discute a nossa performance clínica e investigacional, além da relação interpessoal com os nossos colegas e doentes.

Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
“Curriculite”, constante atualização do conhecimento e alta exigência na publicação de artigos.

Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
Especialidade com grande componente clínica, interventiva e investigacional. Imensas subespecialidades com grande previsão de crescimento. Disponibilidade de trabalhar no setor público e privado.

Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão de carreira – Atualmente, é muito difícil ficar nos grandes centros hospitalares que formam os novos especialistas de Cardiologia.
Enveredar pela carreira investigacional – Há sempre a opção de realizar investigação clínica. Contudo, algo mais translacional ou básico é necessário o contacto com centros de investigação laboratorial.
Constante inovação científica – Tem havido uma constante inovação na parte da Cardiologia de Intervenção e Imagiologia Cardíaca.
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público – Durante o internato não há muitas oportunidades de trabalhar no sector privado, mas após terminar a especialidade, existem imensas oportunidades.

Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Sem dúvida, adoro o contacto com pessoas tão desafiantes e que querem dar o seu melhor pelo doente, fazer a diferença.

Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
Sem dúvida é necessário muito estudo e dedicação para esta especialidade. Estudar para prestar excelentes cuidados ao doente em todas as fases da patologia: desde a fase aguda no Serviço de Urgência à reabilitação e otimização da terapêutica crónica e modificadora de prognóstica. Dedicação para se manter atualizado dos mais recentes ensaios clínicos, ao mesmo tempo que se realiza a própria investigação.

Texto redigido com a ajuda do Dr. Gonçalo Costa, Interno de 1º ano da Especialidade de Cardiologia no CHUC

1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #7 – Cirurgia Geral

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
Ser cirurgião é saber resolver a maioria dos problemas, sob pressões, sem ceder. É conseguir abordar todo o doente cirúrgico, não se focando apenas num órgão ou sistema, e conseguir dar apoio a várias especialidades médicas e cirúrgicas. É integrar conhecimentos de vária áreas (cirurgia, oncologia, imagiologia, anatomia patológica, intensivismo, trauma) e gerir o doente da melhor maneira.
A Cirurgia atua em várias frentes, desde o bloco operatório à consulta externa, enfermaria e urgência. É uma especialidade que está presente em todos os Serviços de Urgência do SNS.

Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Durante o MIM nunca me despertou interesse as cadeiras de cirurgia geral. Tirando Propedêutica Cirúrgica, pela semiologia mas também pela forma pragmática de realizar o exame objetivo. Infelizmente o curso tem pouca prática clínica e tem muitas limitações a demonstrar realmente o que é a Cirurgia Geral. Penso que isso tem vindo a mudar. Foi apenas no Internato do Ano Comum, quando fiz o estágio de Cirurgia e entrei no Bloco Operatório que tive certeza que era o que queria fazer o resto da minha vida.

Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
O que mais me entusiasmou foi a capacidade de resolver um problema ao doente de forma prática. E de ter possibilidade de curar verdadeiramente o doente. Não sei se têm noção, mas há muitas poucas ofertas terapêuticas que têm capacidade de curar. A maioria alivia ou evita a progressão das doenças. A cirurgia pode curar. E depois sabia que não queria uma área que se dedicasse apenas a um órgão ou sistema, mas que tivesse uma grande área de atuação (bloco, enfermaria, urgência) com rotinas diferentes e com possibilidade de fazer diferentes cirurgias, em diferentes áreas do corpo humano. Além disse, sempre gostei da área de trauma, cuja Cirurgia Geral é o grande pilar de abordagem ao politraumatizado.

Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
O local mais frequente é o Bloco Operatório. Contudo, durante o internato passamos muito tempo também na Enfermaria. Apesar de para os internos de cirurgia ser “menos agradável” é na enfermaria que podemos observar a recuperação dos nossos doentes e equilibrar medicamente os doentes (sim, distúrbios hidroeletrolíticos, nutrição, infeções respiratórias e urinárias). O cirurgião geral também tem que ser internista.

Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
Do que diz respeito ao meu internato, ainda não tive possibilidade de sair do CHUC. No meu ano comum, durante o estágio de Cirurgia, como foi feito num hospital distrital, com uma equipa mais pequena, o ambiente era diferente.
Atualmente, o Serviço de Cirurgia Geral do CHUC está dividido em sectores e é um serviço com um corpo clínico enorme. Daí a parte de a relação interpessoal estar mais dissolvida. Contudo, são os internos mais velhos que acabam por ajudar mais os internos mais novos. Na minha experiência foi com os internos mais velhos que aprendi os gestos básicos. Posteriormente, ao longo do internado, vai-se sentindo a ajuda dos especialistas.

Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Dado o campo de atuação da Cirurgia ser enorme, e dada a patologia que abordamos ter uma prevalência grande, penso que a maioria dos hospitais tem capacidade para idoneidade. Os que não têm oferecem possibilidade de colmatar essa falha ao realizar estágios em hospitais centrais. O ensino depende muito do tipo de hospital (distrital vs. central) e das áreas que esse hospital dispõe. No CHUC, por exemplo, não fazemos cirurgia da mama (é a Ginecologia) e raramente cirurgia de patologia venosa ou arterial periférica. Também não temos unidade de Pé Diabético (está ao cargo da Ortopedia e Cir Vascular). Noutros hospitais, sem essas especialidades, acaba por ser a Cirurgia Geral a orientar esses doentes.

Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Sim. Durante o internato somos incentivados a realizar estágio no estrangeiro. Podemos ter uma área de gosto, mas tem que ser discutido com o orientador de formação e o Diretor de Serviço.

Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Para ser Cirurgião Geral é necessária dedicação. E é necessário saber que alguns dos objetivos de vida pessoal vão passar para segundo plano. O trabalho começa, durante o internato, por orientar a Enfermaria, passar visita, observar e examinar os doentes e alterar as tabelas terapêuticas. Depois temos o bloco operatório central ou periférico (cirurgias mais pequenas sob anestesia local). Em alguns dias não há tempo para almoçar. Temos uma tarde por semana para consulta externa. Geralmente depois do bloco voltamos à enfermaria para terminar as altas que não foram dadas de manhã e para ver os resultados dos exames complementares. Fazemos 12 a 48h de urgência por semana, em turnos de 12h ou 24h, com descanso compensatório no dia seguinte caso seja feita noite ou 24h.

Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Sim, é possível. O segredo está em saber gerir o tempo que temos e saber quando precisamos de trabalhar e quando temos tempo para “o resto”. Durante o meu internato continuei a fazer os meus hobbies, embora de forma menos frequente.

Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
A carga horária é enorme. Há semanas (raras) em que passamos as 80 horas. Fazemos muitas horas extraordinárias de urgência. Temos trabalhos para fazer, bases de dados para completar e artigos para escrever. Isto é transversal em todos os hospitais, em todas as especialidades. Há locais com mais ou menos necessidade de “trabalho extra”. Ao longo do internato aumenta a responsabilidade. As horas de urgência “extra” acabam por ser similares em todos os anos.

Como interno, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
É um fator que se sente ao longo do internato. No final do primeiro ano deveremos ser capazes de colocar acessos venosos centrais ou drenos torácicos sem supervisão. E ainda de realizar pequenas cirurgias (sob anestesia local). Ao longo do internato vamos fazendo cada vez procedimentos mais complexos com ajuda de um cirurgião. Às vezes, em procedimentos mais simples (apendicectomias, abcessos perianais) os internos mais velhos ajudam os mais novos no bloco operatório, com um cirurgião a supervisionar.

Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
A vantagem da Cirurgia Geral é a diversidade de áreas nas que podemos diferenciar. Isso depende do tipo de Hospital. Quanto mais central, mais a tendência para subespecialização. A grande maioria dos doentes terá patologia do sistema digestivo; dentro desta, há subespecialidades em cirurgia esofago-gástrica, cirurgia bariátrica, cirurgia hepatobiliopancreática, cirurgia colorretal, transplantação hepática; há ainda cirurgia endócrina (tiróide, paratiróide, suprarrenal); cirurgia da mama; cirurgia de emergência e politraumatizado; e, em alguns hospitais periféricos, pequenos procedimentos de urologia, ginecologia, cirurgia maxilo-facial e cirurgia vascular. Há unidades ainda de Parede Abdominal Complexa e Pé Diabético. O processo dá-se ao longo do internato, depende das oportunidades. Contudo, ao acabarmos o internado, podemos apenas ter vaga num hospital numa determinada área… Portanto, depende muito da oferta de ano para ano.

Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
No CHUC há um exame anual (geralmente no primeiro trimestre) com júri constituído pelo Diretor e pelo Orientador de Formação. Nos últimos anos realiza-se uma história clínica. Nos outros anos apenas é discussão curricular com perguntas teóricas orais. O estudo deve ser feito ao longo do internato. Contudo, muitas vezes não há tempo para ler todas as guidelines e artigos que são precisos. Nas semanas antes do exame gerimos o tempo de forma a fazê-lo.

Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
O nível de dedicação e horas de sono em falta.

Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
Autonomia precoce, rotinas diárias diferentes, vários campos de atuação.

Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão de carreira – infelizmente, é como em qualquer outra especialidade e os concursos para isso são poucos.
Enveredar pela carreira investigacional – É possível fazer investigação, especialmente num Centro Hospitalar e Universitário, estando ligado à Faculdade respetiva.
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público – Felizmente também, dada a prevalência da patologia, penso haver sempre lugar para a cirurgia geral no sector privado.

Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Sim, sem dúvida. É a melhor especialidade das 50 e tais. Penso que depende de caso para caso, mas integrei-me bem no meu Serviço. O importante é trabalhar e dedicar-se. Há dias menos bons, como em qualquer trabalho. O importante é aprender com isso.

Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
Sinceramente, ambos. Há pessoas que não têm destreza para cirurgia. Ninguém nasce ensinado, e muitas das técnicas vão-se aperfeiçoando ao longo dos anos. É importante treinar, ler e estudar antes das intervenções. Não é preciso ter nenhum talento inato para operar, mas há que reconhecer limitações.

Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
A experiência do internato varia de hospital para hospital. O importante é perceber que querem mesmo ser Cirurgiões Gerais. Se for esse o caminho, tudo é mais fácil.

Texto redigido com a ajuda do Dr. João Simões, interno de Cirurgia Geral no CHUC