Primeira Publicação

Caros Leitores,

Bem-vindos à Página Digital da revista do NEM/AAC: a aNEMia! A XXII Direção do NEM decidiu alargar os nossos horizontes e, por isso, criar um departamento reservado para a revista aNEMia. Esta inovação permitiu-nos dedicar mais tempo a este projeto e encontrar formas inovadoras de o levar mais longe. Assim, decidimos dar à aNEMia mais do que somente o formato impresso e conquistar os leitores no meio digital. É, para nós, um enorme orgulho atingir este objetivo e partilhar o fantástico conteúdo produzido pela nossa Redação com mais e mais pessoas.
Deste modo, comprometemo-nos a continuar o fascinante trabalho da redação anterior, aceitando novos desafios e contando sempre com a vossa companhia! Esperamos proporcionar uma fonte de leitura cativante e pertinente para o nosso círculo de leitores!
Queremos, através desta página e da nossa revista, promover a expressão dos estudantes e aumentar a sua ligação não só com o NEM, mas também com a Faculdade, a Medicina e o Mundo.
É assim, com um enorme prazer e com a perspetiva de caminhar a passos de gigante, aproximando-nos de todos aqueles que nos quiserem ler e conhecer, que vos apresentamos a renovada aNEMia!

“Tudo pode ser escrito, se houver coragem para o fazer. O pior inimigo da criatividade é a Insegurança” – Sylvia Plath

A Coordenadora da aNEMia, Sara Cardoso, 4º ano
O Editor Assistente da aNEMia, Filipe Barbosa, 4º ano

Heróis do Quotidiano

Andamos pelas ruas, pelos passeios, dentro de carros, olhamos pelas janelas, cruzamo-nos com eles, mas não os vemos. Nunca os vemos. Nunca sabemos. Se olhamos, não notamos. Talvez não nos interessem, talvez nos sejam invisíveis.
São eles, são os heróis que nos guiam, que nos salvam, que nos inspiram. Inspiram-nos a ser o nosso melhor. Ensinam-nos a inspirar, a mostrar que o podemos ser, que podemos fazer melhor, que podemos ser os nossos próprios heróis.
Um herói não tem de ser aquele homem gigante de capa ao vento, com collants demasiado apertados e roupa interior vestida por cima da restante. Heróis! Uma palavra tão estranha para os nossos ouvidos, mas tão familiar. Eles existem, andam por aí. Andam por aí, mas não os vemos. Não nos interessam.
Temos os olhos virados para nós mesmos, alheios de tudo o que não o nosso umbigo. Não temos noção do que nos rodeia, dos heróis que temos à nossa volta. Heróis como aquela mãe que nos acorda, nos faz o pequeno-almoço e nos leva à escola, mesmo tendo aquela dor de cabeça que parece nunca passar. Heróis como um pai que nunca para em casa, que se mata a trabalhar para pôr comida na mesa e, especialmente, para pagar aquelas sapatilhas fixes que todos os famosos usam hoje em dia e que todos os filhos querem.
Estes são os heróis. Heróis que não vemos, que nos seguem e que nós seguimos. Estão sempre lá, mesmo passando despercebidos. E nós? Será que estamos?
Existem mais, claro. Não são apenas estes. Também outros o são. Também outros merecem uma capa. Heróis como um tio, cuja paixão eram os aviões, cuja paixão era voar, mas que nunca pode realmente abrir asas. Não passava de um rapaz. Um rapaz a seguir um sonho que nunca chegaria. Ficou cego. Sim, cego. Tudo por causa de uma brincadeira e uma granada supostamente desativada. Um azar que lhe tirou a visão e a vida como a conhecia. Também o seu futuro lhe fora roubado. Estava tão perto e não chegou lá. Herói? Parece mais alguém sem sorte. Mas sim, trata-se realmente de um herói, de alguém cuja esmagadora força de vontade prevaleceu sobre os obstáculos.
São heróis como este que nos fazem pensar, aproveitar a vida, querer ser como eles: fortes, perseverantes, felizes. Enfim, heróis. Pessoas que apesar de terem perdido o seu sonho, a sua razão de viver, encontraram uma nova. Continuaram, formaram-se em Direito, escreveram, fizeram pelos outros, fundaram e presidiram a ACAPO e, acima de tudo, foram felizes. Conhecem algo mais irónico do que um cego numa biblioteca? Bem, este cego criou o Serviço de Leitura Especial para Deficientes Visuais, na Biblioteca Municipal de Coimbra, onde trabalhou até ao fim da sua vida. Não ficou por aí, passou por muitos cargos, desde diretor das revistas “Luís Braille” e “Jardim da Sereia” a pai. Sim, pai. Para mim não pode deixar de ser um herói. Nunca viu a sua mulher, nem ela o viu a ele. Nunca viu os seus filhos, mas criou-os e, à sua maneira, viu-os crescer. Foi alguém que não se deixou levar pela corrente, que escolheu o seu rumo passando por cima dos obstáculos, por maiores que fossem e mesmo não os vendo. Alguém com uma força sobre-humana, força essa que a maior parte de nós apenas ousa aspirar a ter.
Como ele há mais. Provavelmente não os vemos, mas em cada um de nós, há um herói. Podemos não o encontrar. Podemos pensar que não está lá. Ou talvez apenas precisemos de olhar com mais atenção.
Se calhar aquela pessoa que nos serve o pequeno almoço no café, aquele taxista que nos deu boleia depois de uma noite na Praça ou a senhora simpática do minimercado do fim da rua também são heróis. Não há forma de saber, não os conhecemos. Talvez nós próprios o sejamos. Não para nós, claro, para outros.
Um herói não tem de mudar o mundo inteiro. Se mudar uma pessoa, já o tornou num lugar melhor para todos. Pouco bem se faz em grandes quantidades. Um resultado qb pode mudar vidas.

Josefa Guerra, 3º ano

Escolha ou consequência

“Alunos do ensino profissional vão passar a poder ingressar no ensino superior sem terem de realizar exame nacionais”. Desde que este título do jornal Expresso saiu para as bancas, muitas vozes se elevaram para o comentar, seja para enaltecerem os que a ela deram origem, seja para os criticarem. No entanto, antes que a minha voz contribua para a polémica em questão, acompanhem-me numa breve atualização dos factos.
O ensino profissional como o conhecemos atualmente foi criado há exatamente trinta anos e tem vindo a crescer progressivamente. O objetivo da sua implementação era combater o insucesso e abandono escolares, preparando os alunos para o mercado de trabalho, pelo desenvolvimento de competências que possibilitam o exercício de atividades profissionais. Por outras palavras, o ensino profissional, ao invés do ensino geral dos cursos cientifico-humanísticos, não tem propriamente o intuito de preparar o aluno para a universidade e sim oferecer uma alternativa muito mais prática e profissionalizante, permitindo à pessoa ingressar no mercado de trabalho pelo menos três anos mais cedo (duração de uma licenciatura) com as competências técnicas necessárias à área do seu interesse. Assim sendo, este ensino, que não é de todo mais fácil, não aborda temas que o ensino geral explora e que são alvo de avaliação nos exames nacionais.
Até aqui, tudo bem. Um aluno do ensino cientifico-humanístico faz os exames nacionais e ingressa no ensino superior, um aluno do ensino profissional realiza a prova de aptidão profissional e dois estágios profissionais e entra no mercado de trabalho. Mas, e quando um aluno do ensino profissional quer, afinal, ir para a universidade? Nesta situação, as circunstâncias não são simples de definir, afinal, este aluno não passou os últimos anos de ensino obrigatório a estudar a matéria das provas de ingresso na universidade e sim a ser avaliado em temas mais diferenciados para o exercício profissional. O facto destes alunos terem que ser avaliados em matérias não lecionadas sempre foi alvo de insatisfação por alunos e professores e esta medida veio acabar com ela: acabaram-se as provas de ingresso para estes alunos. A solução perfeita? Não creio.
Acredito que quando um aluno escolhe ir para um curso profissional enceta um caminho que lhe abre portas que o ensino geral por si só não abre, ou seja, o ensino profissional é uma alternativa para aqueles que não veem futuro num curso cientifico-humanístico, não por ser mais difícil, mas por não lhe despertar interesse como o ensino profissional, mais prático, desperta. Não digo com isto, claro, que uma pessoa que, ao acabar o curso profissional, decida que o ensino superior é o próximo passo, por variadas razões, não tenha o direito de prosseguir com os estudos, mas aí, tem que se sujeitar ao que os alunos do ensino geral se sujeitam para chegar ao mesmo destino destes.
A situação que estes alunos enfrentam não é diferente do exemplo que passo a explicar. Foquemo-nos nos cursos de Línguas e Humanidades e Ciências e Tecnologias, os dois mais escolhidos pelos alunos do ensino secundário geral. Como sabem, estes cursos oferecem saídas profissionais diferentes, abordando, por isso, conteúdos muito diferentes. Imaginemos que um aluno de 12º ano do curso de Humanidades decide que, afinal, pretende ingressar no curso superior de Fisioterapia. Está no seu direito, é claro; no entanto, tem um problema - as provas de ingresso para o seu curso de eleição abordam temas para os quais não foi preparado. A solução neste caso, será, também, que se permita que alunos nestas circunstâncias não façam os exames nacionais exigidos pela faculdade em que quer entrar?
Eu sei, até porque passei por isso, que escolher aos 15 anos o rumo, pelo menos o profissional, para a sua vida, não é fácil. As pessoas mudam de ideias e até se arrependem das escolhas que fazem; não obstante, tal como todos nós temos o direito de fazer as nossas escolhas, temos, também, o dever de lidar com as suas consequências.

Bruna Carvalho, 3º ano


O que me (in)diferencia?

De regresso a um novo ano letivo, abrimos as portas a uma nova edição da aNEMia, a revista que os estudantes de Medicina da FMUC constroem, estruturam, criam e na qual investem o seu tempo, a sua dedicação, a imaginação que os deixa fluir para além de todos os conceitos permanentemente estudados e avaliados, assim como um completo rigor científico associado a todo o trabalho de pesquisa e investigação. A aNEMia é vivida muito para além do papel que os nossos colegas folheiam, é vivida diariamente e é, sobretudo, debatida seriamente. Conservando este conceito, a revista deu um passo importantíssimo nesta transição que a fez ascender a Departamento do NEM/AAC, transição acompanhada por um desafiante lançamento da 55ª edição a 11 de setembro de 2019, a par de um debate que questionou todos os presentes acerca de uma temática que se traduz numa cada vez maior preocupação: a existência de médicos indiferenciados.
Deparámo-nos com esta condição que nos circunscreve e não sabemos, nem podemos saber, ficar indiferentes; não nos preocupamos diretamente com o número avassalador e crescente de indiferenciados que existem, mas ficamos realmente assustados com a possibilidade de nós virmos a ser um deles, mais um deles. Porque os indiferenciados são os nossos colegas, os colegas que estudaram arduamente durante 6 anos para alcançarem um estatuto que os encosta na margem e os impede de prosseguir na especialidade, de continuar a sonhar e de exercer a profissão pela qual percorreram o longo caminho inacabado, interrompido, obstruído por um país que parou, um Portugal conformado e estagnado.
A colaboradora da Redação e autora do artigo que gerou toda a atividade, Sara Meirinhos, introduziu o tema como “um dos maiores flagelos da formação médica” e de seguida o moderador da mesa, Dr. João Nunes, Interno de Formação Geral no CHUC, deu início ao debate questionando os convidados sobre quais consideravam ser os fatores que deram origem a esta problemática. Perante uma plateia completamente preenchida, um dos cinco oradores presentes, Vasco Mendes, Presidente da ANEM, responde que, desde 1995, o curso de Medicina tem aumentado o número de vagas, desprovido de um plano formativo e não acompanhado por perspetivas a longo prazo. Na mesma linha, o Prof. Dr. Carlos Robalo Cordeiro, atual Diretor da FMUC, comenta que “Portugal gosta de dar grandes passos sem fazer a devida estruturação”, apoiado pelo reforçado “mau planeamento” referido pelo Dr. Fausto Pinto, Presidente do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas. Um desses casos é a alteração da prova final de acesso à especialização que necessita de várias adaptações subsequentes, nomeadamente dos currículos para a prova. Para além destes fatores, também o componente político deve ser tido em conta como afirma o Dr. João Cardoso, Interno de Cirurgia Cardiotorácica no CHUC, uma vez que dizer “aumentamos o número de estudantes de medicina” fica bem politicamente. O Dr. Luís Trindade, Presidente do Internato Médico do CHUC, conclui que o número de estudantes depende da formação e esta última da qualidade, logo, devemos refletir sobre a qualidade que pretendemos para este curso com uma média de 30 anos de serviço.
Sendo cada vez mais evidente a existência dos médicos sem especialidade, é colocada uma nova questão que se centraliza no papel destes médicos no SNS, perante a qual são mencionadas tarefas múltiplas asseguradas por uma mão-de-obra barata. “À partida, quem faz medicina é médico, mas que modelo queremos?”, é a pergunta lançada pelo Dr. Fausto Pinto, uma vez que devemos perceber se pretendemos investir numa diferenciação correta com a devida monitorização ou prolongar esta situação, mantendo alguns de parte para outras funções. Apelando a todos nós, o presidente do CEMP afirma que existe uma grande inércia e, portanto, temos de ser criativos nas soluções e propostas. Na verdade, segundo Vasco Mendes, os indiferenciados representam um encargo mais significativo na gestão hospitalar relativamente aos outros profissionais de saúde, dadas as contratações através de empresas (geridas por Médicos Especialistas…) sobretudo num país com elevada recorrência ao Serviço de Urgência. Grande parte da frente de ataque das urgências é, neste momento, assegurada por indiferenciados para satisfazerem as necessidades que deveriam ser confiadas a outros.
Com o avançar da noite, tornou-se notável a necessidade de nos fazermos uma voz cada vez mais firme e audível, de transmitirmos a vontade de nos diferenciarmos e de transformarmos este conformismo sobre o qual os políticos dormem tranquilamente. Quando questionado sobre o papel ativo de um estudante na resolução desta problemática, o Dr. Luís Trindade estimulou a proatividade dos presentes e acrescentou que não devemos deixar fragilizar a nossa estrutura, fazendo notar que a ausência de uma Comissão de Internos, quando existem cerca de mil, é uma falha a colmatar. O Dr. João Cardoso declara que é efetivamente vantajoso estar envolvido em associações que nos representam, no entanto, não nos devemos esconder atrás das grandes estruturas, devendo investir na voz conjunta que ecoa no nosso futuro, espelhada na força que nos impele a viver o sonho pelo qual abdicamos de estar noutro lugar a pensar noutra perspetiva qualquer. Queremos mais e temos o direito de concluir qualitativamente o curso pelo qual conquistámos, um dia, a nossa vaga, o nosso “sim”. Ser indiferenciado não é, de todo, o objetivo pelo qual fomos admitidos em Medicina.
Para terminar, procurou-se responder à questão “Partindo do princípio de que não queremos médicos indiferenciados no país, quais as medidas a ser tomadas nos próximos tempos?”, concluindo-se que é imprescindível uma maior comunicação entre os órgãos responsáveis e uma passagem definitiva da teoria para a prática. Para além disso, considerou-se problemático o facto de a Ordem dos Médicos não possuir um gabinete dedicado ao ensino pré-graduado, pois a existir promover-se-ia uma conversa e, consequentemente, a resolução de vários problemas.
Encerrado o debate, a noite avançou com uma nota sobre a Conferência Médica “Call Me”, a realizar-se nos dias 25, 26 e 27 de outubro, onde este também será um tema de destaque. Depois dos agradecimentos e breves palavras de encorajamento do Dr. Robalo Cordeiro, o evento terminou com um coffee break preparado pelos colaboradores do departamento, dando asas a mais um tempo de convívio e discussão pessoal. A revista, na sua totalidade, expôs-se aos mais diversos olhares, foi tocada e explorada, foi levada e finalmente lançada.
Agora que expusemos esta indiferenciação à qual estamos sujeitos, não nos deixaremos acomodar; apostaremos na continuidade e na insistência de uma história alarmante vivida atualmente por médicos que não queremos que seja a nossa.

Inês Teixeira, 3º ano
Maria Gomes, 3º ano