Anexo de Atestado de Óbito

Chamo-me Maria, Joana, Carla, Mariana, Marta, Júlia, Cláudia, Simone… Não se assustem com o título, é apenas uma história de amor.
Que caias a escorrer nos meus braços, para te enxugar a alma. Chegar-te ao meu coração em compasso, aveludada na calma, na candura do nosso espaço, e fazer do carinho as gotas do meu oceânico amor por ti.
Ante todos esses versos exalantes da proposta tácita do amor, sem qualquer diluição, sem qualquer viés, preso ao sorriso que a minha imaginação expressa. Se houvesse começo mais lindo, estaria a ser contraproducente face ao abono da verdade. Ele endereçou-me esses versos. Já saberão de quem se trata.
Ao longo da minha existência fui levada a exercer exaustivamente a “mística feminina”, tendo na vanguarda das minhas ações, de ser a misteriosa, a intuitiva. Este patamar, nada mais é do que estabelecer um rótulo de incompatibilidade com a razão, atravessando um terreno pantanoso da minha desvalorização. Ao longo dos séculos, chamaram-na de “essência feminina”, numa apologia ferrenha à fórmula dos dois sexos. Queria sim, criar-me o tempo todo, a cada instante, e ser livre para tal. Assumir a angústia inerente a liberdade. A todo o momento vós sois juízes e parte nessa senda do julgamento social imputada à mulher – pensamento de François de la Barre plasmado na epígrafe da grande obra de Simone Beauvoir. Assim, de um tal modo, fui-me construindo num mundo cuja pedra angular é o homem e assim vi-me junto do engodo de que “a mulher é o sexo forte e consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo” – forma de legitimar, ao som de uma boa retórica, a exploração. Toda essa “violência simbólica”, expressão de Pierre Bourdieu, dá azo a muito mais do que o “simplório”. Uma organização binária, defensora de uma oposição, dada por forma dicotómica, onde a mulher é ausência do masculino. Durante muito tempo a cultura separou a esfera pública da esfera privada. Algo que Carol Hanisch refuta, dizendo: “o pessoal também é político.” O tipo de vida que produzimos em privado tem relação com o que esperam de nós na esfera pública. Daí a violência doméstica ser tão subvalorizada e naturalizada. Se sois robusto grilhão e em meu couro pousar a mal liberdade de um querer são… Se sois apertados quereres, de um gosto a nó e acompanhada dizer-me só. E ouvidos não querer ter aos meus dizeres… Se sois os olhos dos meus pés, sem antes os pés dos olhos teus, caminharem de quem tu és até o chão dos sinceros olhos meus… Se sois assim… O que adianta a liberdade de gostar, se a liberdade própria de estar, mal posso ter?... E as histórias de maldades, nem as conto, as vezes que foram, para não mais maldades… Lágrimas secas que escorreram, ausências que presenças não foram, desventuras que as aventuras viveram e, até, palavras que quiseram dizer o que não disseram. Sou menos ou mais do que pareço? Xiiiiiu! Se eu soubesse haveria o risco de ser e assim pagar o duro preço! Pior será preferir o comum ator, querido por este mundo rabisco e saber parecer, sem ser autor de nada. Pergunto-me, sempre que medo sentir… e se um dia, entre o mal, a morte vir? Fui pedir para conversar com alguém. Reclamaram-me de não ter tempo. Só que o papel da vida reclama pintura e nós, reclamamos tempo! Ela, na sua conjuntura, deixa-nos entre razões no tempo errado, em momentos de desagrado, sem tempo para reclamações! Pensei… serei eu a ingrata, a insatisfeita? Talvez mais além, se assim for a vontade da vida, eu terei de saber esperar, ou fingir saber o que fazer. Até cheguei a dizê-lo: Não serei para além de mim, por ti! Serei o melhor de mim, por nós! Tentando capturar a minha autoestima e a minha vontade de estar ali… mas, até a próxima pancada seguida de flores. Chamem um pássaro, ele tem as asas que eu não consigo ter, neste silêncio de amparo e sem sequer lágrimas verter. Não sei a quem chamar, para em tudo acalmar o medo do ridículo. Que a coragem saia para fora e assim tê-la, velada, adorada e mirada, para que eu continue gostando de gostar de mim. As palavras existiram um dia… Mal-arrumadas, com espírito, enquanto esperavam o amanhã de ontem, um busto com cunho daqueles que vieram buscar esta busca partida, fragmentada de não dizer. O jeito perdeu-se de ser interpretado, assim como as minhas nódoas negras. As palavras… quando as busco, sem as trazer e nadar entre elas, em charros ou oceanos, faz com que as deixe lá e só faço, de longe, acenos. Queria dar novos passos para sair daquela situação. Mas, passos? Quais? Corajosos, dizem que são? Em fuga, para onde eles irão? E quando plácidas, deverão ficar? Haverá quem me mostre um guião? Até onde, de verdade, irão? Serão resilientes à impávida objeção? E sobre remorsos de uma caminhada em vão? Quão fortes afirmam fronte ao pedido de perdão? Passos, quais são? Mas, o que será de mim se não?... se não der esses passos?
“– Polícia! Senhora, está tendo briga cá em casa. Meu pai… ele quer bater na minha mãe! Por favor, vem rápido, pelo amor de Deus! Ele está ameaçando a minha mãe…”
Digo-vos já! Hoje, foi um dia diferente, foi o dia do meu funeral. Não existe agressor de uma só vez. A dor nunca estará vestida de carinho… ela pode estar suja de carinho. Esta violência não tem contornos suaves, porque ela é uma lança descendo sinicamente. O começo estava escrito na aliança e agora o fim está escrito na lápide. Não sabia o que responder, sempre que me perguntavam: “na noite anterior, deste algum motivo para ser violentada?”. Até hoje não sei responder a esta outra questão: “Mas tu? Uma senhora estuda, inteligente, porquê se sujeitar a isso?”. O pesadelo não era durante as noites, não foi de repente, não foi uma circunstância. O pesadelo era! Simples assim, sem eufemismos e subterfúgios, dentro da sua colossal complexidade. Os outros velaram a minha dor com os seus silêncios… até que ele (o meu corpo) não era velado com a dor dos seus choros.
Assustem-se com o título! Foi apenas uma história de “amor”.

Rodrigo Fortes, 5º ano

1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #2 – Medicina Interna

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação? 
Ser médica de Medicina Interna é sempre ver um doente como um todo, em todas as suas vertentes.
Recebemos o doente na urgência: debilitado e com queixas agudas que interferem com a sua qualidade de vida. Depois temos 2 alternativas: ou o doente responde rapidamente e temos uma solução muito rápida e dirigida às queixas ou o doente precisa de ser estudado e tem que ser internado – quer pela queixa de base, quer pela necessidade de cuidados mais prolongados.
No internamento acompanhamos o doente no cumprimento de tratamentos, com os reajustes necessários perante a evolução ou tornamo-nos o Dr. House e vamos puxando de um novelo até descobrirmos o que o doente tem (e não, não é sempre lúpus!).
A satisfação maior que temos é dar alta a um doente que recebemos (por vezes em estado grave) na urgência e temos a felicidade de acompanhar a evolução positiva do mesmo até os devolvermos à família! Infelizmente, nem sempre conseguimos. Somos médicos e humanos, não deuses ou milagreiros... também temos que entender que o corpo humano tem limites (nomeadamente de resistência) e que a Medicina Interna recebe, muitas vezes, os doentes mais fragilizados em termos clínicos, humanos e sociais. Nem sempre corre tudo bem...
Também temos a versão da consulta: em que vemos doentes da urgência ou internamento para reavaliações ou estudos que possam ser feitos em ambulatório. Recebemos doentes das várias especialidades e referenciados dos cuidados de saúde primários.
Dependendo dos hospitais, ainda podemos ter “hospitais de dia”, onde os doentes são acompanhados de forma a cumprirem cuidados específicos, avaliações mais dirigidas ou a fazer a toma de medicação intra-hospitalar sob vigilância médica.

Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Tal como todos os estudantes de Medicina, esperamos sempre que haja aquele momento em que se torna evidente a nossa escolha futura. Comigo não foi assim tão claro (e para a maioria dos meus colegas também não!). Gradualmente, conforme íamos dando matérias e passando por estágios fui compreendendo o que gostava mais e os temas com os quais me identificava menos. Como em tudo, as pessoas com quem nos cruzamos, vão sendo fundamentais para nos apercebermos disso. Dessa forma vamos analisando o que nos vemos a fazer no futuro... e não há especialidades sem dificuldades ou que gostemos da mesma forma de tudo!

Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?

A Medicina Interna tem uma coisa que me agrada muito: não é redutora. Essa liberdade para ver o doente sobre vários ângulos, conseguir ajudar sobre várias perspetivas e decisões e a possibilidade de “sub- diferenciações” em várias vertentes, sempre me pareceu atrativa!

Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário? 
Sendo uma especialidade holística e hospitalar, a Medicina Interna tem sempre a versão internamento, consulta e urgência. Nos CHUC ainda temos a possibilidade de trabalharmos não só em equipas multidisciplinares (oncologia, hepatologia, nutrição, diabetologia), como em acompanhar doentes em hospital de dia (medicina, diabetologia, autoimunes).

Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/ enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes? 
O CHUC é um centro hospitalar enorme, com uma equipa extremamente diversificada e extensa. Nos serviços todos por onde passei (e tive oportunidade de passar por todos os pólos) fui sempre bem recebida e acolhida. Nunca senti a falta de apoio ou de acompanhamento que às vezes vemos os colegas referir, mas sei que isso passa muito pelo interesse e expectativas individuais de cada um!
Se forem pró-ativos e perguntarem, questionarem, desafiarem os mais velhos a vos explicarem, até hoje, ainda não vi ninguém ser desiludido! Se oferecerem ajuda, mostrarem interesse, perguntarem o que estão a ver, o que nos leva a tomar decisões em detrimento de outros, vamos fazê-lo cada vez mais espontaneamente e vão sendo incluídos na equipa como parte dela!
Lembrem-se que na Medicina Interna, e com o tempo, vamos treinando o multitasking e como a carga de trabalho é significativa, nem sempre nos lembramos que o que é evidente para nós, não é para os colegas mais novos. Nesses casos, não tenham medo: perguntem! Não é por mal, mesmo! Às vezes só nos esquecemos que todos já fomos IACs e internos do 1º ano e que não sabíamos o que estavam os outros a fazer...
Há um ponto fundamental que é frequente esquecemo-nos: nós somos todos humanos! Também temos problemas pessoais, dores físicas e mentais, saudades de casa, medos e dúvidas. Todos. E às vezes, no início dos internatos, achamos que somos os únicos com problemas e esquecemos que os mais velhos, independente da idade, já passaram por aí, pelos mesmos medos e dificuldades e muitas vezes ainda passam! Há dias péssimos para todos... Mas a parte boa, é que podemos contar com os colegas. Nem que seja para partilhar um chocolate no final de um dia mau, para uma brincadeira, para um abraço... isso sim, faz um internato. E nisso, posso dizer que fui e sou uma sortuda.

Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino? 
Na Medicina Interna, quase todas as valências têm idoneidade. A qualidade de ensino no CHUC é imensa, sobretudo pela associação à FMUC que permite que haja uma estratégia de ensino e formação de qualidade e com muitos anos de experiência.

Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Sim, sem dúvida! Podemos fazer estágios com relativa facilidade, sobretudo porque sendo uma área abrangente podemos escolher muitas áreas e perspetivas diferentes, beneficiando da qualidade da sabedoria e experiência de outros locais!

Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão? 
Um dia habitual começa na enfermaria, cerca das 8h30-9h. São avaliados cada doente internado e reavaliado o estado clínico. É necessário rever a tabela terapêutica no sentido de se preparar a alta. Tentamos manter sempre uma relação de entreajuda com os familiares e isso implica ir informando das evoluções que vão ocorrendo e envolvendo-os no acompanhamento ao doente. São realizadas notas de entrada completas para cada doente admitido, diários clínicos eficientes, atualizados diariamente e delineados planos estruturados e organizados que podem ter que envolver discussões clínicas com outras especialidades. A nota de alta pode ser gradualmente construída, mas é sempre revista e organizada no dia em que se decide que o doente reúne condições para regressar ao domicílio.
Quando há consultas, estas podem ser estruturadas de diversas formas: 1 ou mais dias de consulta, 1 ou mais períodos de consulta. No meu local de trabalho, e ao longo de internato, vamos aumentando progressivamente a carga de consulta que temos. Inicialmente só acompanhamos os especialistas do serviço (de forma a percorrermos todas as consultas que ocorrem no serviço), depois começamos gradualmente a ser independentes, mas sempre acompanhados pelos colegas dos gabinetes ao lado – orientador de especialidade incluído, para termos apoio em qualquer dúvida e em qualquer momento. É habitual que se comece com 1 período único de consulta (habitualmente de Medicina Interna) e chegamos ao final do internato com 2-3 períodos de consulta (1 de Medicina e os restantes de subespecialidades à escolha do interno em conjunto com as necessidades do serviço).

Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Como em tudo e em todas as especialidades, se houver organização, dá tempo para tudo! Para ter família, para ir ao ginásio, para ter hobbies, para ir de férias... Dá sim, mesmo para a Medicina Interna!

Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
Todas as especialidades têm que ter uma retaguarda para a formação científica e essa nem sempre é exequível apenas no nosso horário de trabalho. Continua a ser precisa dedicação, abdicar de alguns momentos pessoais e trabalhar fora de horas. Os relatórios precisam de ser feitos, os trabalhos para congressos vistos e revistos e os artigos precisam de ser escritos. Se algum deste trabalho pode ser feito no hospital, a verdade a que a maioria não o é. Sim, levamos trabalho para casa, temos que estudar doentes que nos dão luta, que têm patologias menos frequentes, temos trabalhos para fazer, e sim, às vezes temos mais do que um turno de urgência por semana. Às vezes vamos ter que sair de uma noite de urgência e ter que ir rever os doentes da enfermaria porque o resto da equipa não está, mas se a equipa for unida e sobretudo organizada, estará tudo bem planeado do que é ou não é preciso fazer e consegue-se ser produtivo.
Durante o internato, notei sempre que a carga de trabalho vai evoluindo. É progressiva e muito natural.
Mas sim, férias grandes e festas são sempre alturas mais caóticas e somos todos médicos, todos sabemos que temos que ajudar e que há alturas mais problemáticas!

Como interna, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes? 
No internato, tudo é gradual. Não se espera o mesmo de um interno de 1º ano no primeiro mês ou de um interno no primeiro mês do 5º ano! As coisas são naturalmente graduais e progressivas.
Ver/aprender, fazer e ensinar. Vemos e aprendemos como os mais velhos fazem, depois tentamos inicialmente com toda a supervisão, depois gradualmente com mais autonomia, até ao dia em que conseguimos fazer sozinho e vamos avisar que já não precisamos de ajuda!

Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo? 
Isto vai depender muito do orientador e das chefias mas na maioria dos casos, dá perfeitamente para ser ir escolhendo!
O alinhamento de estágios é feito logo no início do internato. O meu conselho é que ouçam os colegas mais velhos, com quem se identificam mais. Mas ouçam várias pessoas! De diferentes hospitais e com diferentes realidades!
As subespecialidades, por exemplo na consulta, podem ser um bocadinho mais tendenciosas porque como se acompanha um orientador é natural que se siga os mesmos passos e também vamos ficando mais rapidamente mais à vontade nas subespecialidades que acompanhamos mais. Mas também depende do interno pedir para acompanhar outros colegas mais velhos, acompanhar todas as consultas disponíveis e, na hora de escolher, ver aquilo que mais gostou. É natural que seja pedido aos internos de um serviço que ajudem a colmatar as falhas de alguma área mais desfalcada, mas mesmo aí nenhuma área é estanque e podemos pedir sempre para alterar... as vezes basta perguntar!

Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades? 
As avaliações durante o meu internato foram sempre anuais, em fevereiro-março e referentes ao ano anterior. Quando o tempo de permanência no serviço era superior a 6 meses, era necessário a realização de um relatório descritivo das atividades realizadas nesse período de tempo. No dia do exame, o relatório é discutido com os avaliadores (definidos pelo serviço) e eram efetuadas perguntas teóricas com aplicabilidade prática. Nos 2 últimos anos de internato, os exames simulam o exame final de internato e a estrutura do mesmo: discussão curricular, parte teórica e parte prática de discussão de um caso clínico após realização de história clínica e exame físico completos, com um doente real da enfermaria.
Nos estágios, foi me sempre pedida a apresentação de um tema teórico, nos serviços de acolhimento e a realização de um relatório descritivo de atividades.

Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
A maior dificuldade, na Medicina Interna, é manter o acompanhamento constante das matérias e atualizações disponíveis. Ao ser uma especialidade generalista, há essa componente de atualização científica constante que não pode ser descurada, no entanto, o ritmo de publicações, cursos e atividades é alucinante e exige uma imensa organização nesse sentido.

Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
Para mim, a maior virtude da Medicina Interna é não ser estanque. Claro que isso também pode ser visto como uma dificuldade na hora de estudar para exames e na quantidade de cursos e trabalhos para realizar, mas essa liberdade, para mim, é claramente o maior ponto forte da medicina.

Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
- Progressão de carreira: É preciso lembrar que a Medicina Interna é uma especialidade com muita gente, a progressão de carreira é possível e há várias trajetórias possíveis, em várias áreas.
- Enveredar pela carreira investigacional: A atualização científica na Medicina (e respondendo já ao ponto seguinte), é constante e muito diversificada. Todas as áreas nas quais a Medicina Interna se pode envolver há uma grande avaliação de novas estratégias e na revisão teórica e prática de conceitos.
- Constante inovação científica;
- Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público: Na maioria dos hospitais não há qualquer entrave a trabalhar em simultâneo no sector privado. A única coisa fundamental é que as duas não se confundam nem se sobreponham! Claro que para isso, obriga a uma gestão de tempo muito rigorosa e a abdicar de períodos que poderiam ser de descanso ou de estudo.

Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas? 
Eu não escolhi Medicina Interna de forma leviana. Correspondeu ao que eu tinha previsto e planeado e nesse sentido, voltaria a escolher a mesma especialidade.
De vez em quando, agora que terminei a especialidade, pergunto-me isso: “teria escolhido outra coisa?”. A resposta é invariavelmente: não!
Mas sei que há pessoas que escolhem Medicina Interna com menos convicção (por muitos motivos) e que apanham “sustos”. A Medicina Interna é uma especialidade difícil e independente. É preciso vir a contar com isso!

Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
Tenho dúvidas que sejam coisas que possam existir em separado. A Medicina é, como sempre nos disseram, uma arte! Mas nenhuma arte pode dispensar a dedicação e o estudo constante!

Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Não desvalorizem a Medicina Interna, isso é uma ideia há muito ultrapassada e com muitas provas dadas. E seja qual for a especialidade, tirem uns minutos para pensar se acham que se vêm a fazer isto a vida toda. Todos fizemos estágios, pensam nos quais se identificaram mais e qual foi o motivo para isso.

Texto redigido com a ajuda de Joana Cascais, interna de Medicina Interna no CHUC

1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #1 - Cirurgia Pediátrica

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
Ser cirurgião pediátrico é ter nas nossas mãos a vida das crianças e consequentemente o futuro das famílias. Significa fazer a diferença para muito tempo, muitas vezes com um único procedimento. A cirurgia pediátrica atua essencialmente em 4 diferentes setores que se dividem em Cirurgia Gastrointestinal, Cirurgia Plástica, Cirurgia Urológica e Cirurgia Torácica.

Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Desde o momento em que fiz a Residência de Cirurgia, no 5º ano do curso, que sabia que a minha escolha seria uma especialidade com um componente cirúrgico importante porque gostava muito do ambiente do bloco operatório e sentia que os cirurgiões tinham um sentido prático, eram capazes de resolver os problemas rapidamente e definitivamente através de um procedimento cirúrgico. Para além disso, sempre me fascinou a parte técnica da cirurgia, pela destreza e elegância dos movimentos do cirurgião. Esta é uma parte da qual não conseguia abdicar.

Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
No momento da escolha, Cirurgia Pediátrica era a segunda opção depois de Cirurgia Plástica. Gostava da especialidade por ser muito completa e abrangente, por obrigar a competências cirúrgicas bastante diversas como as cirurgias abertas, cirurgias laparoscópicas, cirurgia mais macroscópica mas também mais minuciosa e delicada. Por outro lado, também me interessava o trabalho com crianças, o desafio que é manter um clima leve, tirar os medos, juntar alguma brincadeira aos momentos para as distrair e assim as poder ajudar. Outro fator que me fez escolher a Cirurgia Pediátrica é a importância que considero que representa a saúde das crianças.

Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
O nosso serviço está localizado no Hospital Pediátrico de Coimbra, onde decorre todo o nosso trabalho. Diariamente, o tempo é dividido entre o bloco operatório (central e ambulatório), as enfermarias (de Cirurgia Pediátrica, Cuidados Intensivos e outros serviços que requeiram a nossa avaliação), as consultas e a urgência.

Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
O nosso serviço é pequeno com 8 especialistas e 4 internos. Penso que é por esse motivo que mantemos uma relação de alguma proximidade, em que toda a gente se conhece bastante bem. O ambiente entre internos é de grande proximidade e de grande entreajuda, que se nota em momentos de realização de  trabalhos científicos e na realização do currículo cirúrgico, sendo que os internos mais velhos ajudam os mais novos; por exemplo quando surge uma cirurgia mais interessante e rara, rapidamente nos informamos uns aos outros. A grande maioria dos especialistas está sempre disponível para discutir cada caso e ajudar em todos os momentos se os internos tiverem necessidade. Penso que tal como acontece em qualquer serviço, por vezes há momentos transitórios de maior tensão, mas que são vividos sobretudo entre os especialistas.

Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Eu diria que todas as valências têm idoneidade durante a especialidade, pelo grande volume e grande diversidade de casos e de doentes que é possível ter quando se está num hospital tão grande como o CHUC. Ainda assim, há períodos dos estágios em que os internos são valorizados mais pela sua capacidade de produzirem trabalho útil do que no sentido de serem formados com vista a exercerem autonomamente no futuro. Por vezes, a quantidade de trabalho é tão grande que nem sempre há tempo para os internos aprenderem ao seu ritmo e poderem esclarecer as dúvidas que naturalmente aparecem. Muitas vezes, principalmente nas especialidades de adultos, terão que avaliar e tomar atitudes em relação a doentes (no internamento, na urgência), que podem não ser as mais adequadas ou podem não ser tão acertadas como as de uma especialista. Ao mesmo tempo, por vezes sente-se pouca disponibilidade, principalmente pelo pouco tempo disponível, para se explorarem as falhas técnicas e tentar corrigi-las.

Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Durante o internato, a maior parte do tempo é passada no nosso serviço de origem (cumulativamente cerca de 3 anos e meio). Os estágios obrigatórios incluem 1 ano na Cirurgia Geral, nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e 6 meses em algumas valências da Pediatria (Hepatologia, Gastroenterologia, Neonatologia e Cuidados Intensivos Pediátricos) no Hospital Pediátrico de Coimbra e numa das maternidades em Coimbra. Durante o resto do internato, há espaço para 6 meses de estágios opcionais em especialidades de adultos (que geralmente são cumpridas nos HUC) e 6 meses de estágios opcionais de Cirurgia Pediátrica que podem ser realizados noutras instituições nacionais ou internacionais.

Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Um dos aspetos mais desafiantes e viciantes da minha especialidade é que os dias raramente são iguais uns aos outros, sendo que estamos constantemente a ser surpreendidos com desafios que poucas vezes contactamos anteriormente e com casos diferentes. Ainda assim, o dia começa habitualmente por volta das 8h em que vamos avaliar as crianças antes de estas irem para o bloco operatório. Depois, geralmente as cirurgias eletivas ocorrem durante a manhã. Nos intervalos entre cirurgias, tentamos ir orientando as crianças do internamento ou outros pequenos recados que aparecem regularmente, como algum penso (dos traumas, das queimaduras ou pós-operatórios). À tarde, há frequentemente consultas e avaliamos o restante internamento. Avaliamos ainda os meninos que irão ao bloco no dia seguinte e pedimos o estudo pré-operatório, se necessário. Depois de ir para casa, estudamos as cirurgias e os procedimentos que vão ter lugar no dia seguinte. Nos dias mais livres e no fim-de-semana, estudamos outros assuntos mais gerais da cirurgia pediátrica e produzimos trabalhos científicos, como artigos, pósteres e apresentações. Uma vez por semana, temos a reunião de serviço em que são discutidos brevemente os doentes que estão internados e onde se planeia a logística das semanas seguintes relativamente ao bloco operatório, urgências e consultas.

Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Durante o internato, o tempo livre é escasso e é imprevisível, pelo que é difícil ter outras atividades regulares durante a semana. Já ao fim-de-semana, há mais tempo e é possível ter outras atividades nos tempos livres, uma vez que durante quase todo o internato não temos que fazer urgência ao fim-de-semana. Enquanto especialista, diria que o tempo livre é mais previsível, mas com uma carga de urgências maior do que os internos e por isso com menos tempo livre aos fins de semana e feriados. Pode dizer-se que é uma especialidade com possibilidade para criar uma vida familiar, na medida em que todos os especialistas têm vidas familiares com filhos.

Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
Durante o internato, atualmente, os internos fazem 1 turno de urgência de 12 horas e não fazem noites nem fins-de-semana. No último ano do internato, os internos passam a fazer urgência como especialista e por isso passam a fazer noites e turnos de 24h sendo que no total fazem aproximadamente 10- 12 turnos de 12 horas por mês. Até ao momento, não temos bloco adicional e por isso não temos horas extraordinárias oficiais. Em termos de horário semanal, temos, em teoria, de cumprir 40 horas, acabando por fazer quase sempre mais de 50 horas.

Como interno, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Diria que o nosso grau de independência seja talvez ligeiramente inferior ao de outras especialidades cirúrgicas com que já contactei, como no caso da Cirurgia Geral. O lado positivo disto é que não recai demasiada responsabilidade precocemente sobre os internos. Os internos são mais apoiados pelos especialistas do serviço e estes estão sempre disponíveis para as dúvidas que vão surgindo, evitando que façamos procedimentos ou cirurgias para as quais ainda não estamos preparados. Desta forma, a nossa evolução tem mais a conta a formação e os desafios são mais adequados ao estadio do internato em que nos encontramos. Sendo assim, a parte técnica desenvolve-se de forma gradual, sendo que as oportunidades vão surgindo naturalmente. Ao mesmo tempo, há poucos períodos em que os internos estão todos simultaneamente no serviço, o que permite que cada um tenha espaço para criar o seu próprio currículo sem demasiada pressão. Objetivamente falando, os internos desempenham o papel de cirurgião principal na maioria das cirurgias do ambulatório desde os primeiros 6 meses, como na reparação de hérnias inguinais, umbilicais e ventrais, na circuncisão, na excisão de lesões da pele, nas orquidopexias no caso de testículos mal descidos e nas unhas encravadas. Depois, começam a fazer algumas cirurgias mais simples dos setores por onde vão passando a partir do 3º ano (quando voltam dos estágios obrigatórios da Cirurgia Geral e da Pediatria) e vão evoluindo gradualmente. Em contexto de urgência, o interno faz urgência como 3º elemento e fica a maior parte do tempo com o telefone do serviço, sendo que faz a primeira avaliação do doente e pode contactar o especialista quando surgir alguma dúvida. Os internos fazem consulta, inicialmente a consulta geral de Cirurgia Pediátrica, e depois vão começando a fazer autonomamente a consulta dos setores por onde passam, sendo que no nosso serviço não há consultas em nome próprio, nem de Cirurgia Pediátrica geral nem dos diferentes setores. A visita aos doentes do internamento é feita por quem está no serviço, sendo que, durante a semana, os internos encarregam-se da maioria dos doentes e aos fins-de-semana são os especialistas. Geralmente, o internamento da Cirurgia Pediátrica é menos trabalhoso do que o de outras especialidades médicas ou até mesmo a Cirurgia Geral. Ainda assim, em toda a nossa atividade, sempre que há alguma dúvida ou alguma complicação é fácil contactar rapidamente um especialista, que ajuda prontamente a abordar o problema.

Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
Dentro da especialidade, existem médicos mais dedicados a cada um dos setores (Cirurgia Urológica, Cirurgia Plástica, Cirurgia Gastrointestinal e Cirurgia Torácica), apesar de não serem subespecialidades formais. Geralmente, o processo de atribuição dos setores ocorre após o término da especialidade e tem-se prendido com a necessidade do serviço nesse momento. No entanto, todos têm que saber resolver problemas urgentes de todos os setores de forma a poderem abordar estes doentes na urgência. Ao mesmo tempo, há procedimentos mais gerais, como a cirurgia de ambulatório, que cabem também a todos os médicos do serviço de forma rotatória.

Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
No nosso serviço existem dois momentos de avaliação formal, um no final do 3º ano, que marca o meio do internato e outro exame que é o exame final da especialidade. O exame do meio do internato consiste na colheita de uma história clínica num dia e no dia seguinte há discussão da história clínica e de outros temas variados da cirurgia pediátrica. Como me encontro no 3º ano, ainda não fiz nenhum exame.

Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
Apesar de ter ainda relativamente pouca experiência e pouca responsabilidade comparando com os meus colegas especialistas, diria que a maior dificuldade relativamente à minha especialidade é a possibilidade de fracasso na população pediátrica. As crianças têm uma mortalidade associada às suas patologias bastante inferior à dos adultos. Um dos motivos para isto é o facto de as grandes malformações (que tinham grande mortalidade associada no passado) serem cada vez mais raras com a vinda do diagnóstico pré-natal e da liberalização do aborto. Por outro lado, as crianças geralmente têm uma melhor capacidade de recuperação do que os adultos, face às mesmas circunstâncias, pela sua fisiologia própria e pelo facto de terem muitas vezes menos co-morbilidades associadas. Felizmente, tudo isto melhora o outcome nas crianças comparativamente com os adultos. Apesar de ser raro, aparecem, porém, situações limite com mortalidade associada. E o facto de as crianças serem a maior prioridade das suas famílias e em quem devemos investir tudo quanto pudermos, coloca maior pressão nas decisões – que tantas vezes precisam de ser rápidas. São exemplos disto o trauma, as queimaduras ou procedimentos life-saving no bloco operatório. Qualquer decisão menos acertada relativamente a uma criança tem consequências em toda a sua vida futura e na sua família. Penso que a capacidade de lidar com estes momentos menos bons será uma das mais difíceis de aprender na Cirurgia Pediátrica.

Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
Pelo mesmo motivo que os fracassos são a parte mais complicada de gerir, os sucessos são o principal fator positivo da minha especialidade e aquilo que nos faz ter força para trabalhar a cada dia. E na Cirurgia Pediátrica, a regra é o sucesso. Por outro lado, ao contrário de muitas especialidades de adultos, é raro não se investir num doente por causa das co-morbilidades, da pouca vida de relação ou da baixa expectativa de uma vida futura com qualidade. Nas crianças, investe-se quase sempre tudo quanto é possível. Sendo uma especialidade cirúrgica, tem ainda a grande vantagem de o raciocínio ser prático e os problemas são muitas vezes resolvidos com uma intervenção, o resultado e o benefício da nossa ação fica imediatamente à vista. Por último, esta é uma especialidade muito completa que abrange cirurgia major e minor, em idades muito diversas - desde recém-nascidos prematuros até adolescentes de 17 anos (com corpo de adulto) e onde é preciso dominar áreas cirúrgicas muito diversas e conhecer bem o doente pediátrico, os cuidados intensivos e saber por vezes evitar a cirurgia e optar por técnicas minimamente invasivas, como a endoscopia digestiva e a embolização com o apoio da radiologia. Tudo isto torna a Cirurgia Pediátrica apaixonante. Em relação aos diferentes serviços de Cirurgia Pediátrica do país, há uma vantagem evidente que é a transplantação hepática, que apenas existe no nosso centro. Para além disso, por ser o único hospital terciário da região centro, consegue ter uma variedade bastante grande de doentes e de patologias. Na minha opinião, é um serviço muito competente que, no mínimo, está entre os melhores serviços nacionais de Cirurgia Pediátrica.

Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de: progressão de carreira; enveredar pela carreira investigacional; constante inovação científica; oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público?
Como em qualquer área da prática médica, na Cirurgia Pediátrica há neste momento dificuldade na contratação pelos hospitais após o internato, pela insuficiência de vagas. Sendo a Cirurgia Pediátrica uma especialidade que existe num número reduzido de hospitais em Portugal, há a possibilidade de termos dificuldade em ficar a trabalhar como efetivos imediatamente após o exame de especialidade e podemos até ser obrigados a exercer como especialistas num hospital que fique longe das nossas famílias.  A especialidade de Cirurgia Pediátrica permite fazer carreira investigacional, sendo que existem centros em Portugal que fazem investigação nomeadamente na área da Cirurgia Experimental e da Cirurgia Minimamente Invasiva com modelos animais. A inovação científica, tal como em qualquer especialidade, depende essencialmente do grau de interesse pessoal, da capacidade de cada um de procurar informação nova, de continuar a discutir casos com os colegas e a questionar constantemente se os métodos, técnicas ou atitudes terapêuticas que se usam no dia-a-dia são as mais indicadas, ou se, pelo contrário há alternativas potencialmente melhores. Ainda assim, pode afirmar-se que, comparando com outras especialidades, na Cirurgia Pediátrica, há um número pequeno de iniciativas científicas nacionais, sendo que existe um único congresso de Cirurgia Pediátrica anual, por exemplo. Ao mesmo tempo, o apoio financeiro para a participação em formações ou congressos internacionais é praticamente inexistente, o que também difere de outras especialidades. Na Cirurgia Pediátrica, há uma dominância evidente do setor público em relação ao setor privado, sendo este último escasso e onde se realiza principalmente cirurgia de ambulatório, como reparações de hérnias, circuncisões, orquidopexias, cirurgias da pele.

Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Escolheria novamente a mesma especialidade sem hesitar. A minha especialidade está a
corresponder e a superar as minhas expectativas. Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade? Penso que no caso da Cirurgia Pediátrica é necessário uma dose equilibrada de talento e de dedicação. O componente técnico das cirurgias e dos procedimentos realizados aprende-se com recurso a repetição dos movimentos e treino, e qualquer pessoa consegue aprender a operar com o treino suficiente. Penso que se pode comparar a cirurgia ao desporto, em que a parte técnica é tão importante como a capacidade de compreender o jogo, o domínio das duas em conjunto é que permite agir com simplicidade e eficácia. Sendo assim, alguns, com maior talento, conseguirão atingir os mesmos objetivos com menor treino e alguns conseguirão com o mesmo treino realizar as cirurgias mais complexas, com melhor taxa de sucesso. Mas na Cirurgia Pediátrica, continua a ser essencial um domínio da parte teórica, fora do bloco operatório, sendo muitas vezes mais importante saber quando não operar um doente e em vez disso optar por um tratamento conservador ou menos invasivo.

Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Em jeito de conselho, acrescento que a decisão sobre a escolha da especialidade é importante e define sem dúvida um rumo na nossa vida profissional e no caso da carreira médica que se confunde muitas vezes com a vida pessoal. Ainda assim, penso que a decisão sobre a escolha da especialidade é de certa forma sobrevalorizada. Não existe um único caminho capaz de trazer a felicidade. É essencial, para esta escolha, que se definam algumas áreas de que mais se gosta e que se excluam algumas opções que não são de todo compatíveis com o próprio, isto é, nem todas as pessoas são capazes de gostar de todas as especialidades. Mas, no final, o principal determinante da felicidade é a capacidade de adaptação à escolha que se fez e a vontade de vencer desafios, que todas as especialidades trazem incondicionalmente. Depois de escolhida a especialidade, deve vestir-se a camisola e tentar ser o melhor possível, mantendo sempre uma grande humildade e sabendo que há sempre muito mais para aprender, em qualquer fase da carreira.

Texto redigido com José Pedro Lopes, interno do 3º ano de Cirurgia Pediátrica no Hospital Pediátrico de Coimbra (CHUC)

Associativismo: Clichés e Outras Coisas

Até há um ano, o Associativismo era apenas mais uma palavra da língua portuguesa. Pensava-o como um grupo de pessoas especiais, que, de alguma forma, se destacavam dos demais pelo facto de terem cargos com alguma visibilidade.
Olhava-os como uma elite: pessoas interessantes, na sua maioria com um ar sério e aparência mais velha. Sempre me questionei: “Como será que se chega ali? O que terão feito para o conseguir?”, mas recordo que o pensamento mais recorrente era “Como têm tempo para tudo? Há pessoas com sorte!”
Hoje, para mim, o Associativismo é uma realidade, faz parte da minha vida! Afinal de contas, neste momento, também faço parte deste grupo de pessoas e sei que não somos mais do que meros estudantes. Estudantes que, ao se interessarem e envolverem em projetos, acabam por ser convidados para pertencer a uma lista, concorrendo a um cargo. E, hoje, consigo compreender que é uma evolução natural, sem lugar a “tachismo”. As pessoas que chegam a estes lugares têm mérito e mereceram-no. Claro que esta é a minha realidade.
Hoje, sei que o Associativismo é uma Escola. E atenção que é uma escola como muito poucas: é uma Escola Familiar. Familiar porque, na realidade, é mesmo disso que se trata, uma família. Estamos lá, uns para os outros, como em qualquer família exemplar. Por vezes, basta um olhar para sabermos que tudo vai correr bem. E, mesmo que não corra, no final de tudo vamos estar lá uns para os outros, como no primeiro dia! E Escola porque nos ensina mais do que qualquer curso superior, não em quantidade, mas em qualidade dos ensinamentos. As modernamente chamadas soft skills: a gestão de tempo, a gestão de uma equipa, a gestão de conflitos, o poder da comunicação. Ensina, igualmente, o valor do trabalho de equipa, da entreajuda, o saber ouvir e respeitar a opinião do outro, mesmo que diferente da nossa, o trabalhar com pessoas diferentes de nós - valores estes que serão fundamentais ao longo da nossa vida!
Mas, desengane-se quem pensa que é tudo um mar de rosas, porque não o é. “É só festas, casacos giros com o nome e muitos ainda têm direito a estatuto.” Ainda há em demasia esta visão redutora e é, até, ofensiva. Estar no associativismo é lutar com todo o esforço para mudar coisas e continuar tudo na mesma, é lidar com o fracasso, é ter (demasiadas) reuniões até às 5h da manhã com aulas no “dia seguinte” às 8h, é na mesma semana ter quatro reuniões, é arrumar convívios no fim destes, é desesperar à espera da resposta a um email, é ter fins-de-semana seguidos ocupados com atividades, assembleias gerais ou congressos, é querer estudar/namorar/passear/procrastinar mas ter algo que não pode ser adiado porque assumimos esta responsabilidade.
Quem me é próximo já me ouviu dizer “Porque é que me meti nisto?”. Admito, já quis desistir por diversas vezes. Mas (e há sempre um mas), existe a tal família de que vos falei, temos pessoas que estão a contar connosco, temos parceiros de equipa que precisam de nós, temos compromissos assumidos, e sempre farei por honrar os meus.
Um ano passou, um ano duro, um desafio constante, um sem número de vezes a pensar “não vou ser capaz”. Apesar disto, um ano de uma Escola que não teria de outra forma. Cresci tanto! O Associativismo ensina-nos tanto!
Vivi momentos indescritíveis que levarei para sempre na minha memória. E mais do que isso, levarei estas pessoas (parceiros do Associativismo) no meu coração, pela vida fora (não todas, porque não temos de nos identificar com todas; temos, sim, de respeitar todos!).
Se me perguntassem “Terias aceitado o convite para o cargo, novamente?”, hoje, diria que sim! Amanhã, não sei… Mas, hoje, sim!
Marta Neves, 5º ano

Edição Especial da aNEMia para o TEDxUniversidadedeCoimbra

É com muita honra que colaboramos com mais uma edição do TEDxUniversidadedeCoimbra, celebrando a simbiose entre as várias formas de alcançar as pessoas a quem podemos dar algo de novo. Abraçando de uma forma ímpar o seu mote “Metamorfose”, a equipa que dá vida a este evento não baixou os braços perante a adversidade do momento difícil em que vivemos e preparou, para todos vós, um evento incrível que revoluciona aquilo que o definia anteriormente. No que concerne a aNEMia, queremos guiar-vos para que não percam um único instante deste evento e para que possam, a partir deste, ingressar no processo de mudança que nos leva a ser melhores humanos nos mais diversos aspetos.
Contamos convosco!
Acede à revista e todas as informações no issuu (ícon à direita na versão desktop do site) ou no site do evento! https://www.tedxuniversidadedecoimbra.pt/anemia.html

A Coordenadora da aNEMia, Sara Cardoso, 4º ano do MIM
O Editor Assistente, Filipe Barbosa, 4º ano do MIM



Individualismo

“Vão-se os anéis, ficam os dedos”. Foi esta expressão o motivo de estar agora sentada na minha varanda a escrever. Uma amiga disse-ma em conversa e, andando eu a refletir muito (ainda mais que o habitual) sobre relações, parece-me importante desenvolver este tema.
Se formos ao limite, podemos interpretá-la da seguinte forma: quando morremos, de nada servem os anéis, o ouro que temos. Seremos inevitavelmente comidos por bichinhos e fertilizaremos o planeta para as gerações futuras. Prova disto é, vejamos, a situação atual do covid-19. De que adianta viver numa casa de 3 andares com piscina, ter os carros mais seguros para viajar, se aparece uma coisa invisível e ficamos a respirar por um tubo? Sim, podemos argumentar que quem tem mais posses, provavelmente terá a quarentena facilitada por não ter de ficar confinado a uma divisão da casa, por poder comprar máscaras melhores e mais regularmente. Mas onde quero chegar é que, uma vez expostos ao vírus, o ouro não decidirá se temos mais ou menos sintomas e a sua gravidade.
Porém, “vão-se os anéis, ficam os dedos”, é também uma forma muito prática de dizer que a única pessoa com a qual poderemos sempre contar, até ao fim dos nossos dias, está em nós próprios. A meu ver, esta é uma realidade muito triste. Todos ouvimos em algum momento da nossa vida, certamente, um “estou aqui para o que precisares”, “qualquer coisa, já sabes”. Mas e quantas vezes é que também, efetivamente, precisámos de alguém e fomos deixados por nossa conta? Quantas vezes depositamos fé em alguém, para depois levarmos uma lição?
Algo que me entristece bastante é o individualismo. Vivemos numa sociedade cujas bases assentam nos valores errados – dinheiro e estatuto. Não será a família mais importante que o dinheiro? Não é o amor ao próximo, um “obrigada” de uma criança, um sorriso de um idoso, mais importante que um ordenado com quatro dígitos?
Vivemos enganados. Passamos a nossa vida em busca da felicidade e, por muito cliché que pareça, a felicidade está na viagem. Mas poucos são aqueles que o sabem. Não aproveitamos o caminho. Dizemos a nós próprios e ensinamos aos nossos filhos que a felicidade está em viver numa casa grande, ter um carro alemão e um “Dr” antes do nome. Enganamo-nos e aos nossos. Esta luta pela prometida felicidade faz com que muitos considerem apenas o seu próprio bem-estar e necessidades.
É-me imenso chocante o facto de sentir diariamente o individualismo dos futuros médicos. Atualmente, em Portugal, o processo de seleção dos futuros profissionais de saúde é ridículo e uma promoção da competição. Porque é que no nosso país consideramos que alguém com média de 19 será melhor médico do que alguém com uma média de 16? Já pensaram que estamos a perder excelentes profissionais, ricos em amor e altruísmo, por não atingirem determinadas notas?
Programamos, formatamos os jovens de forma a serem todos iguais, para entrarem em determinado curso. Obrigamo-los a serem competitivos, a serem melhores que os outros, a não se entreajudarem, para desempenharem a profissão que, a meu ver, requer o maior humanismo possível. Depois como é que não se querem queixar de que foram vistos no hospital por alguém que nem olhou para vós? Que nem vos deu uma palavra carinhosa? É justo exigir humanismo de alguém que foi treinado para ser o melhor, para competir? Até a entrada para a especialidade é uma competição. Resumimos 6 anos de curso na capacidade de decorar matéria e não temos minimamente em consideração a personalidade do aluno.
Posto isto, algo que defendo ter de ser urgentemente debatido são os médicos que estamos a formar. Há pessoas que pura e simplesmente não têm personalidade para ter algo tão precioso como a vida de alguém nas suas mãos, ponto final. Porque é que no nosso país não submetemos os futuros médicos a uma entrevista, como fazem vários países, a fim de aferir traços como a empatia ou o altruísmo? Ainda hoje há várias pessoas a estudar medicina pelo estatuto ou por terem boas notas e “ser um desperdício alguém com média de 18 ir para rececionista”. E se o meu filho for um génio, mas for incapaz de olhar o outro nos olhos? Até pode ser uma besta aos olhos de todos, mas desde que compita bem, será médico – no papel. Porque ser verdadeiramente médico não é ter o canudo na mão.
Muitas vezes alguém procura o médico apenas para conversar, para ter uma palavra de conforto. O médico deve, acima de tudo, estabelecer uma relação de confiança com o doente e permiti-lo falar de tudo aquilo que o perturbe. O paciente precisa de se sentir ouvido e que as suas crenças são validadas.
Algo que me disseram várias vezes e que, por alguns momentos, admito pensar ser verdade, é que quem não olha a meios para atingir os seus objetivos é quem tem sucesso. Mas será alguém efetivamente feliz passando a sua vida a calcar os outros? Merecerá qualquer tipo de mérito alguém que engorda a sua conta bancária através da exploração dos funcionários? Infelizmente, são incontáveis as situações em que isto ocorre.
Sou defensora acérrima de que inevitavelmente prestaremos contas pelos nossos atos, seja nesta vida ou, para quem crê, sendo esse o meu caso, numa outra forma de vida. Alguém que trafica humanos, bate nos outros ou rouba, pura e simplesmente não pode receber o mesmo reconhecimento que aqueles que sempre trataram os demais como irmãos, como iguais. Não nos esqueçamos da consciência. Quem pratica o mal, só olhando para si, acabará por ter dificuldade em encarar-se ao espelho. Haverá algo mais perturbador do que não conseguirmos viver com nós próprios?
Rita Rodrigues, 4º ano

Desconfinamento da Mente na Bonança de Ser Vida

No sentido de pugnar o nocivo confinamento das mentes em corpos já de si confinados por imposição durante semanas morosas e infindáveis, pelas implicações inerentes e subsequentes na proliferação de uma outra pandemia severa de doença mental, urge, hoje como ontem, ser grito que se erija na promoção do valor imensurável da vida, permitindo que, na solidão e no silêncio que esmagam, se veja consolo e abrigo nas palavras.
Assim, hoje como ontem, impera salientar que a vida nunca deixará de ser total primavera, qual doce e fantasiosa quimera, descobrindo em cada cheiro novo anseio e em cada vista nova eterna conquista. Abracemos a poesia, que só quebra a sua rima quando desagua, por fim, na pífia alacridade do sopro irreversível do inexorável prazer de ser que se esvoaça.
De facto, a verdade é que ser só o somos uma vez e inteiro seremos se, com avidez, nesta fugaz e traiçoeira passagem, pincelarmos a vida qual bela miragem. Neste prisma, hoje como ontem, olhemo-nos do monte mais alto, revendo o nosso sobressalto e, em hipnose ou sono profundo, procuremos tomar parte do mundo, plantando em pranto errante, nómada hesitante, o elevar vagueante do Norte, fazendo da sorte o sim da estrada. Levantando marés, tocando as estrelas e roubando centelhas ao fogo dos céus, procuremos libertar a dor dos infernos e amainar ventos desertos de cor. Deste modo, dando mundos ao mundo, será prenha a esperança no ressurgimento dos ares que trarão de novo o amor na raiva da dor e verão nascer tua luz que seduz, meus olhos, meio e anseio, que em rodopio de sentidos, unidos, tão mais rotinada, farão aceitar-te em mim, por fim, presença de coração alheio.
Luís Fernandes, 4º ano