Boa tarde! Antes de mais, obrigado pela vossa
disponibilidade em conversar connosco. Começando, talvez, pelo que está mais
diretamente relacionado com a minha futura profissão e dos meus colegas, acha que os cuidados de saúde primários e secundários estão
suficientemente preparados para atender uma pessoa surda?
André – Não.
Acontece existirem pessoas com maior sensibilidade e que fazem um esforço para
nos atender da melhor forma possível. Mas, chegarmos e termos alguém que domine
a língua ou que nos forneça um intérprete, não acontece. Vão existindo alguns
acordos e, por exemplo, o IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) tem
serviço de interpretação, com marcação prévia. Agora com o COVID-19, o SNS tem
atendimento também em LGP, mas há tanta coisa que ainda falta!
Como procedem as pessoas surdas para ir a uma consulta
médica?
André – Depende… a pessoa surda pode
contratar um intérprete para ser a ponte de comunicação entre o utente e o
médico, tendo de pagar do seu próprio bolso e, naturalmente, nem todos têm esta
possibilidade.
Quem tem familiares que sejam fluentes em
LGP, poderá sempre procurar ajuda neles, mas aí levanta-se a questão da
privacidade. No meu caso, tenho a Marisa (esposa), em que a questão da
privacidade não se coloca… Há também situações em que os surdos não têm
simplesmente possibilidade de contratar um intérprete o que, aliado a não terem
ninguém que os possa auxiliar... faz com que acabem por ir sozinhos e, por
norma, é uma aventura!
Todos os surdos falam língua gestual? E quanto à leitura
labial e escrita de português?
André – Na grande maioria sim, falam
Língua Gestual Portuguesa. Os que não falam, poderá ser porque têm uma surdez
mais ligeira, conseguindo oralizar e também preferindo que assim seja. Noutras
situações, não falam por estarem isolados e nunca terem tido oportunidade de
contactar com outros surdos, não conseguindo, assim, desenvolver a sua língua
gestual. Esta situação já não acontece tanto atualmente, mas ainda é uma
realidade.
Todavia, a grande maioria privilegia o uso
da LGP. A leitura dos lábios é muito relativa, há quem se sinta capaz e
confortável para o fazer e há outras pessoas que não. Mas, na minha opinião,
isso não pode ser a solução. Por vezes, a leitura labial é vista quase como uma
obrigatoriedade para todos os surdos. E há quem não seja capaz de o fazer…
Relativamente à escrita, é difícil de
responder. Há surdos que escrevem muito bem, mas a maioria não. Isto acontece porque
a gramática da Língua Gestual é diferente da do Português.
Como funciona o Ensino Básico e Secundário para as pessoas
surdas?
André – Existem escolas de referência
para onde os alunos surdos costumam ir e, aí sim, o método de ensino é adaptado
à sua realidade. Isto não acontece quando os pais não querem, frequentando
antes uma escola comum, sem receberem qualquer tipo de apoio.
Do que conhece, como lidam os pais com a surdez do filho/a?
André – Depende
de muitos fatores! Acredito que, inicialmente, seja um choque, principalmente
quando é uma realidade desconhecida para os pais. E acho que o mais difícil
será digerir esse choque. Vemos pais que vão à procura de um milagre, falar com
os médicos, procurar operações ou procedimentos milagrosos... Em jeito de
brincadeira, há país em que só lhes falta colocar um aparelho auditivo em cada
dedo dos filhos, para que eles oiçam!
No meio de tudo isto, o mais importante é que
exista uma base de apoio muito grande e, acima de tudo, os pais tenham a
capacidade de entender que o melhor para o seu filho poderá não passar por
aquilo que idealizaram, ou até mesmo que a nossa sociedade ache correto ou
aceitável. A nossa sociedade vive de modelos e há muitas pessoas que acham que
todos temos de encaixar nesses modelos. Isso não é real!
Considera que ainda há muitos pais que não aceitam que o
filho/a seja surdo?
André – Eu não
diria que não aceitam…mais cedo ou mais tarde, acabam por aceitar. Há exceções,
claro, e essas são preocupantes. Nesses casos, temos crianças que crescem à
margem daquilo que os pais querem e exigem, acabando por não serem crianças
efetivamente felizes.
Acho que o grande problema se prende na
capacidade que os pais têm em adaptar/dar os estímulos certos à criança. Por
vezes, esta incapacidade resulta de puro desconhecimento, sendo este o grande
problema da nossa sociedade. Noutras situações, a falta de conhecimento advém
de opiniões que não são as mais corretas ou adequadas para o processo de
aprendizagem e desenvolvimento de uma criança surda.
Sente que existe discriminação? Ou, pelo contrário, que os
surdos estão consideravelmente mais incluídos na sociedade?
André – Eu
acho que, atualmente, a discriminação não é tão visível, havendo situações
pontuais em que ela ocorre… claro que sim. Algumas delas, acontecem muito por
desconhecimento e falta de informação. É aqui que está o grande problema. Não
há interesse em se procurar esta informação, em corrigir as situações quando acontecem
e isso sim, faz com que tudo volte a acontecer novamente. Há situações mais
desagradáveis que outras, mas muitos vezes é uma questão de respeito e
aceitação pela diferença.
Relativamente às oportunidades de acesso ao Ensino Superior
e mercado de trabalho, considera que são muito díspares entre pessoas surdas e
ouvintes?
André – Sim, são muito díspares! Um
surdo pode se candidatar, efetivamente, a um curso superior qualquer. Todavia,
quando lá chega, a instituição não está preparada para o receber… começando
logo pelo facto de não ter um intérprete de LGP que assegure a comunicação nas
aulas. Isto acaba por inibir os surdos de ingressar em cursos que realmente
gostem. O que se verifica é que têm, em primeiro lugar, em conta onde poderão
ter um intérprete que assegure a comunicação.
É da opinião que a LGP deveria ser de ensino obrigatório
nas escolas? Ou pelo menos uma opcional?
André – Sem
dúvida alguma! Em primeiro lugar, porque é mais fácil captarmos e aprendermos
uma língua quando somos mais pequenos, permitindo-nos ao longo da vida e
percurso explorar e praticar essa língua. Em segundo lugar, porque as crianças
não olham para a diferença como algo negativo. Eu sou apenas mais uma pessoa
para uma criança, só que falo uma língua diferente. Já os adultos, é raro
olharem para nós com essa simplicidade.
Acha que os ouvintes têm receio em interagir com as pessoas
surdas? E o oposto, acontece?
André – Eu
acho que os ouvintes têm muito mais medo de interagir connosco que o oposto.
Isto porque, em primeiro lugar, nós temos a necessidade diária de interagir com
eles, pois precisamos de ir ao pão, ao banco, etc. Muitas vezes, temos de nos
“safar”. Em segundo lugar, somos vistos como uma minoria e, por isso, há
ouvintes que acreditam que o esforço tem de partir de nós, fazendo
automaticamente com que tenhamos de ser nós a ir à luta, começar a interação e
tentar quebrar o gelo.
Considera que há igualdade no acesso à informação?
André – Não! Seja
nas notícias, programas, informação escrita ou filmes em Português sem legendas…
não há igualdade. Há pouquíssima coisa acessível que seja compreensível pela comunidade
surda.
Quantos surdos existem em Portugal?
André – Os últimos
censos falam em cerca de 170 mil. Não sei se esta informação está atualizada,
mas no próximo ano teremos novos censos.
Um surdo pode conduzir?
André – Claro
que sim! Aliás, apercebo-me mais rapidamente de um obstáculo ou da aproximação
de uma ambulância do que a Marisa, por exemplo.
Não existe nada a dizer que não possamos conduzir. Tenho todas as minhas capacidades em funcionamento pleno. Simplesmente
utilizo uma língua diferente para comunicar no meu próprio país.
Que línguas gestuais existem, para além da portuguesa?
André – A LGP
não é universal, aliás, como o próprio nome indica, é Língua Gestual
Portuguesa. Cada país tem, assim como a língua oral, a sua Língua Gestual. Por
exemplo, em França temos a Língua Gestual Francesa, em Espanha a Língua Gestual
Espanhola e assim sucessivamente…
Gostariam de contar alguma experiência menos boa que tenha
acontecido, por exemplo, numa simples ida às compras ou ao café?
André e Marisa – Temos várias... Já aconteceu ouvirmos que
parecíamos uns macacos a falar assim com as mãos. Ou que era uma pena o André
ser surdo porque até é bonito! Já insinuaram não entenderem o que é que eu vi
nele, para me casar com ele… Isto com pessoas que nada têm a ver com a nossa
vida, achando simplesmente que têm o direito de opinar.
Consideram que uma pessoa surda tenha maior tendência para
a deterioração da sua saúde mental?
André – Não!
Podem existir situações pontuais, mas não me parece que a causa seja a surdez.
Poderia descrever um dia típico, na vida de uma pessoa
surda?
André – É uma
rotina como a de uma pessoa ouvinte, simplesmente temos algumas adaptações. Por
exemplo, acordamos com um despertador que vibra. No meu caso em particular, não
ligo a televisão para ver as notícias, costumo vê-las nas redes sociais ou online.
Temos um quotidiano normal, como o de qualquer outra pessoa. Existem alguns
desafios no nosso dia a dia mas, no que diz respeito à rotina, não acho que
seja muito diferente.
Professora, pode-nos falar um pouco sobre a relação que tem
com o seu marido? Como se conheceram?
Marisa – Bem, a
minha relação com o André é como qualquer outra, entre um casal! O amor é o que
prevalece e, acima de tudo, está a confiança. Confiamos muito um no outro, tal
é essencial em qualquer casal, mas no nosso caso acho que a surdez “agrava”
essa necessidade. Talvez algumas situações exijam de mim um pouco mais de
atenção, pois sou o apoio dele não só enquanto esposa, mas também porque faço a
comunicação em vários contextos, inclusive com a família.
Somos um casal como qualquer outro,
contudo, não conseguimos fazer um jantar romântico à luz das velas, pois
precisamos de um ambiente com muita luz para comunicar! Também não conseguimos
andar de mãos dadas, uma vez que precisamos delas para comunicar.
Como tem sido o feedback dos alunos de medicina aos quais
dá aulas?
Marisa – De uma
forma geral, muito positivo, e a grande maioria vê a participação no curso como
uma mais valia, por norma mantendo essa opinião mesmo findo o curso. Há até
sempre muito interesse em continuarem a aprender, fazendo o nível II…
Muito do feedback que recebo deste
curso é relativamente a servir para abrir horizontes. Mais do que aprender a
língua, os alunos têm a oportunidade de conhecer uma comunidade diferente, cujas
especificidades é muito importante conhecer. Temos uma ou outra situação em que
percebo claramente que os alunos não se encaixam, ou então que não compreendem
as necessidades da pessoas surda e acham que esta é até inferior e que ela é
que se deve esforçar. Mas… em 7 anos de colaboração com o NEM estes casos foram
muito, muito poucos.
Uma outra situação que me deixa muito
contente, é os alunos reconhecerem que deveria existir uma cadeira, no próprio
curso de Medicina, de LGP, nem que fosse opcional. Assim permitiria e obrigaria
todos os médicos a conhecerem esta realidade.
Esta iniciativa deixa-me muito contente
mesmo, aliás, deixa-me orgulhosa! Acredito que o meu trabalho vos contagie e
que a semente fique em vós… o exemplo desta entrevista é isto mesmo. O vosso
interesse vai além do curso e estão a incluir esta temática em outras
atividades ou áreas.
Um agradecimento muito, muito especial à Professora Marisa
Maganinho e André Taipina por, tão prontamente, aceitarem colaborar connosco,
visando informar os futuros médicos e sensibilizar para a importância de
aprender Língua Gestual Portuguesa.
A entrevista foi
realizada em colaboração com o DSPRA, pelo colega Miguel Castanheira.
0 Comentários