1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #13 – Urologia

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
A Urologia é uma especialidade médico-cirúrgica que estuda e trata as doenças do aparelho urinário e, por extensão, do aparelho sexual masculino. A Urologia é eclética: destaca-se pela sua grande versatilidade, pelo domínio de técnicas diagnósticas ímpares que vão desde a neurofisiologia à radiologia, da ecografia à endoscopia e, por vezes, existe fusão destas modalidades. Em termos cirúrgicos, a Urologia destaca-se por estar na vanguarda dos avanços técnicos. É, por excelência, a especialidade da robótica, da laparoscopia, das técnicas minimamente invasivas e por orifícios naturais. É, sem dúvida, uma especialidade que caminha de mão dada com a tecnologia.
No bloco operatório, o urologista deve dominar a cavidade abdominal, o retroperitoneu e a cavidade pélvica. Para isto, deve estar familiarizado com diferentes áreas cirúrgicas: vascular (pela proximidade aos grandes vasos abdominais e pela realização de transplantação renal); ginecológica e coloproctologia (pela partilha do espaço pélvico).
Omnipotência e “Deusificação”? Não, a maioria dos urologistas são pessoas terra-a-terra, simpáticas, com bom humor, que gostam de trabalhar em equipa e são felizes. É óbvio que estou a fazer uma generalização, mas pensem nas vezes em que conviveram com um urologista ou, caso não o tenham feito, prestem atenção da próxima vez que o fizerem. Existe base científica para estas afirmações – vários artigos comparam as personalidades de urologistas, cirurgiões e não cirurgiões.
As principais frentes de ação dependem do sítio e dos interesses de cada um. Existem variadíssimas áreas da Urologia, podendo haver tendência para a subespecialização: oncologia; litíase; urologia reconstrutiva; neurourologia; infertilidade; andrologia; transplantação e urologia pediátrica.
No exemplo prático de Coimbra e dos CHUC, as principais frentes de ação são a oncologia urológica e a transplantação renal. O serviço de Urologia do CHUC, para além de tratar cirurgicamente doentes oncológicos, tem a particularidade de assumir a oncologia médica de todos os seus doentes – sendo responsável pela realização de quimioterapia e imunoterapia.
 
Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Uma nota pessoal:
Escolher uma especialidade médica deve ter diversas fases e não deve ter início no internato geral, a um ou dois meses das escolhas. Deve começar bem mais cedo, para vos dar tempo para experimentar, vivenciar, escrever a vossa tese nessa área ou mesmo mudar de ideias para um rumo totalmente diferente. Ter um objetivo até vos vai dar mais força para estudar para a prova de acesso à especialidade...
Antes de querer uma especialidade em concreto, o primeiro conflito interno com que nos devemos deparar é: quero uma especialidade médica, cirúrgica ou comunitária? Em termos pessoais, a minha resposta chegou no 3º ano da Faculdade de Medicina, durante as aulas de Propedêutica Cirúrgica com o Professor Henrique. A possibilidade de um primeiro contacto com o doente cirúrgico, a semiologia abdominal, o bloco operatório e o serviço de urgência, foram determinantes na minha escolha. A partir deste momento na minha formação, tive a certeza que iria procurar passar muitas horas da minha vida num bloco operatório e com as mãos na cavidade abdominal e pélvica. Neste sentido, procurei passar mais tempo dentro de um bloco e nas especialidades cirúrgicas – este é o meu conselho para uma escolha mais ponderada e mais direcionada.
O interesse na Urologia surgiu mais tarde, nas aulas práticas da cadeira e no contacto com as atividades desenvolvidas por Urologistas. A facilidade com que éramos integrados, o bom ambiente que por ali imperava e a possibilidade de ajudar em alguns procedimentos, foram grandes marcas no meu interesse pela Urologia. Recordo um momento chave nesta escolha – numa das minhas idas à sala 1 do bloco central do CHUC, o Professor Arnaldo perguntou se já tínhamos visto uma nefrectomia parcial laparoscópica, no tempo cirúrgico de uma apendicectomia. Permanecemos céticos por 45 minutos, mas ao final deste tempo tínhamos ido de “pele e pele”, com o tumor cá fora e a sutura laparoscópica feita. Com esta memória, a partir daí fui juntando mais e mais razões.
 
Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
A escolha de Urologia, em particular no CHUC, foi muito simples. As duas principais áreas de atuação da Urologia do CHUC, são também as minhas áreas de interesse na Urologia. Por um lado, sempre sonhei em combater a patologia oncológica, acompanhar o doente oncológico através do seu diagnóstico, tratamento e prognóstico. Em particular, a oncologia do sistema urinário pela sua prevalência e morbimortalidade. A possibilidade de integrar um serviço de fim de linha no tratamento do cancro urológico, com uma visão holística e uma abordagem médica e cirúrgica, sempre ditou o meu entusiasmo por esta especialidade.
Em segundo lugar, a oportunidade de integrar o serviço de transplantação renal. A participação nas colheitas multi-órgão, as ajudas em transplantes de dador vivo e dador cadáver. A possibilidade de participar no legado deixado pelo Professor Linhares Furtado em Portugal.
Não menos importante, fiz esta escolha pela possibilidade de aprendizagem com grandes médicos e cirurgiões, num ambiente familiar e de trabalho em equipa. Mais ainda, fiz esta escolha pela possibilidade de aprender numa boa “escola” cirúrgica.
 
Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
Enfermaria: Seguimento dos doentes no pré e pós operatório; internamentos para realização de quimioterapia e internamentos por patologia urológica urgente;
Bloco operatório central;
Bloco operatório periférico: cistoscopia; biópsias prostáticas; colocação e troca de cateteres de nefrostomia; entre outros;

Urgência: abordagem à patologia urológica urgente;

Consulta externa;

Reunião de Serviço e Reuniões Multidisciplinares: imagiologia e radioterapia;

Hospital de Dia de Oncologia;

Litotrícia;

Exames Urodinâmicos;

Exames Urorradiológicos;

 
Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/ enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
Existe uma excelente relação entre médicos internos e especialistas. Impera o espírito de equipa e de entreajuda, com grande facilidade para discussão de casos clínicos e ajuda na melhor orientação dos doentes. Existe abertura na discussão de casos de oncologia em reuniões de decisão terapêutica, nas quais os internos participam ativamente.
No bloco operatório central e periférico, existe uma ótima relação entre médicos, enfermeiros e auxiliares, imperando a boa disposição e bom ambiente de trabalho.
 
Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Sim, existe idoneidade completa. Neste momento, só existe internato de Urologia em Hospitais Centrais, com o intuito de garantir uma formação semelhante a todos os internos do país. A qualidade do ensino em Portugal, especificamente na área da Urologia, é muito boa, acima da média europeia. Existem muitos países onde a formação cirúrgica é muito difícil, com dificuldade em atingir números mínimos de cirurgias.
Existem algumas valências nas quais os internos procuram estagiar fora, visando estar perto dos melhores em determinada área ou técnica.
Com o advento da robótica, um dos ponto fracos do CHUC é a inexistência de robôs.
 
Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Definida em decreto de lei, está a obrigatoriedade em realizar 1 ano de estágio em cirurgia geral e 2 meses em cirurgia pediátrica. Os restantes estágios são opcionais e dependentes dos interesses de cada interno - 4 meses que podem ser passados noutras especialidades médicas ou cirúrgicas. Estes podem, também, ser aproveitados para a realização de estágios fora do país, em centros de referência de determinadas áreas da Urologia.
 
Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Um dia de trabalho pode variar muito. Geralmente, começo o dia por volta das 7h50, vejo o meu setor da enfermaria e os doentes que operei. Às segundas, terças e quintas, existe reunião de casos clínicos/ decisão terapêutica às 8h15. Durante a manhã, podemos ter atividade programada no Bloco central, Bloco periférico ou na Unidade de Cirurgia de Ambulatório. Durante a tarde, continuamos o trabalho, podendo estar escalados em prolongamentos no bloco central, estudos urodinâmicos ou unidade de cirurgia de ambulatório. Os internos, geralmente, têm um período de consulta por semana e um ou mais tempos de urgência.
A Transplantação renal poderá acontecer em qualquer altura do dia ou da noite...
Ou seja, é difícil definir um dia tipo.
O nível de esforço e dedicação é elevado, mas a recompensa e felicidade são também igualmente elevadas.
 
Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Sim, com organização existe tempo para tudo. A grande maioria de nós pratica desporto e tem hobbies, fora do hospital. Existe tempo para a vida pessoal, familiar e social, mas por vezes existe menos tempo para dormir.
 
Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
Existe uma carga horária pesada, como em qualquer outra especialidade cirúrgica. Facilmente se excedem as 40h de trabalho semanal. Mas numa especialidade cirúrgica, há tendência para a correlação entre o número de horas de exposição e a prática.
Nos primeiros anos, realizamos urgência apenas durante o dia, sendo que a partir de metade do internato passamos a fazer noites.
Ao longo do internato, vamos recebendo mais tempos de consulta.
 
Como interno, como é o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Existe uma curva de aprendizagem a cumprir, com tempos diferentes consoante a dificuldade da técnica ou gesto clínico. Rapidamente se aprende a executar uma cistoscopia rígida ou flexível, ficando independente tecnicamente. Por outro lado, uma cirurgia mais complexa faz-se em equipa e, muitas vezes, não se é independente, mesmo como especialista. É uma aprendizagem contínua.
No geral, após os 6 anos de internato, os internos estão confortáveis e independentes para realizar a maioria/totalidade das técnicas, cirurgias e abordagens ao doente.
 
Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
Existem as subespecialidades já mencionadas. Todos os urologistas sabem executar a base de todas as áreas da Urologia, no entanto, existe cada vez mais tendência para a subespecialização. A escolha dependerá da vontade do próprio em investir numa área em específico, da existência dessa área no hospital em que trabalha ou, até mesmo da sua criação.
 
Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
Os momentos de avaliação são exames orais anuais, com defesa do curriculum cirúrgico, científico e pedagógico. As datas são definidas pelos internos, em conjunto com a direção do serviço. Geralmente, decorrem em Março de cada ano.
A Urologia é teoricamente exigente, envolvendo um domínio das componentes médica e cirúrgica. As guidelines europeias de Urologia e a sua atualização anual, mantêm-nos a par da evolução da ciência e técnica.
Todavia, considero que a avaliação não é só pontual. O melhor tratamento dos doentes põe-nos diariamente à prova, envolvendo um estudo contínuo de conteúdos teóricos, a par de um treino técnico exigente.
 
Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
É difícil definir a maior dificuldade. É sumamente impossível dominar, médica e cirurgicamente, todos os campos da Urologia. Desta dificuldade nasce a subespecialização.
 
Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?

Semiologia rica;

Grande variedade de técnicas cirúrgicas: cirurgia aberta, endoscópica, laparoscópica, robótica, percutânea;

Independência no diagnóstico: Endoscopia; radiologia; ecografia, urodinâmicos;

Cientificamente estimulante e com evolução constante;

Bons resultados, bons cirurgiões;

Bom ambiente, espírito de equipa;

Transplantação renal;

Oncologia.

 
Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
enveredar pela carreira investigacional;
constante inovação científica;

Existe possibilidade de aliar a carreira clínica à científica e investigacional. Existem alguns urologistas a realizar programadas de doutoramento e a participar ativamente em ensaios clínicos e outros projetos de investigação. Uma carreira puramente de investigação não me parece fazer sentido numa especialidade cirúrgica.

Existe uma constante inovação técnica e científica, tornando a Urologia altamente estimulante. 
 
Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Sem qualquer dúvida. A corresponder e a superar.
 
Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
É uma pergunta para responder com mais maturidade, dentro de 10 ou 20 anos. Quando estiver a olhar do lado do especialista, com experiência na formação dos mais novos. Pessoalmente, tendo a acreditar que o trabalho compensa. A cirurgia envolve treino, repetição e disciplina. Mas ao mesmo tempo, envolve rapidez na decisão sobre o imprevisto - aí entra o talento, a coragem e capacidade de lidar com a pressão.
É uma pergunta para o milhão de euros.
 
Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
O antigo provérbio “fazer das tripas coração”, é sinónimo de superar e vencer adversidades julgadas impossíveis. A Urologia ainda não faz o impossível, mas é a única especialidade que é capaz de transformar um órgão noutro diferente - fazer das tripas bexiga.
A escolha da especialidade é de extrema importância e, muitas vezes, será fundamentada pelas experiências pessoais e pessoas que as compõem. Desta forma, devem procurar investir, no vosso percurso académico, tempo nas especialidades que vos tiram o sono.

Texto redigido com a ajuda de Dr. Vasco Quaresma, médico interno de Formação Específica em Urologia no CHUC
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