O que significa ser
médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
A
Urologia é uma especialidade médico-cirúrgica que estuda e trata as doenças do
aparelho urinário e, por extensão, do aparelho sexual masculino. A Urologia é
eclética: destaca-se pela sua grande versatilidade, pelo domínio de técnicas
diagnósticas ímpares que vão desde a neurofisiologia à radiologia, da ecografia
à endoscopia e, por vezes, existe fusão destas modalidades. Em termos
cirúrgicos, a Urologia destaca-se por estar na vanguarda dos avanços técnicos.
É, por excelência, a especialidade da robótica, da laparoscopia, das técnicas
minimamente invasivas e por orifícios naturais. É, sem dúvida, uma
especialidade que caminha de mão dada com a tecnologia.
No
bloco operatório, o urologista deve dominar a cavidade abdominal, o
retroperitoneu e a cavidade pélvica. Para isto, deve estar familiarizado com
diferentes áreas cirúrgicas: vascular (pela proximidade aos grandes vasos
abdominais e pela realização de transplantação renal); ginecológica e
coloproctologia (pela partilha do espaço pélvico).
Omnipotência
e “Deusificação”? Não, a maioria dos urologistas são pessoas terra-a-terra,
simpáticas, com bom humor, que gostam de trabalhar em equipa e são felizes. É
óbvio que estou a fazer uma generalização, mas pensem nas vezes em que
conviveram com um urologista ou, caso não o tenham feito, prestem atenção da
próxima vez que o fizerem. Existe base científica para estas afirmações –
vários artigos comparam as personalidades de urologistas, cirurgiões e não
cirurgiões.
As
principais frentes de ação dependem do sítio e dos interesses de cada um.
Existem variadíssimas áreas da Urologia, podendo haver tendência para a
subespecialização: oncologia; litíase; urologia reconstrutiva; neurourologia;
infertilidade; andrologia; transplantação e urologia pediátrica.
No
exemplo prático de Coimbra e dos CHUC, as principais frentes de ação são a
oncologia urológica e a transplantação renal. O serviço de Urologia do CHUC,
para além de tratar cirurgicamente doentes oncológicos, tem a particularidade
de assumir a oncologia médica de todos os seus doentes – sendo responsável pela
realização de quimioterapia e imunoterapia.
Em que momento do seu
percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Uma
nota pessoal:
Escolher
uma especialidade médica deve ter diversas fases e não deve ter início no
internato geral, a um ou dois meses das escolhas. Deve começar bem mais cedo,
para vos dar tempo para experimentar, vivenciar, escrever a vossa tese nessa
área ou mesmo mudar de ideias para um rumo totalmente diferente. Ter um
objetivo até vos vai dar mais força para estudar para a prova de acesso à
especialidade...
Antes
de querer uma especialidade em concreto, o primeiro conflito interno com que
nos devemos deparar é: quero uma especialidade médica, cirúrgica ou comunitária?
Em termos pessoais, a minha resposta chegou no 3º ano da Faculdade de Medicina,
durante as aulas de Propedêutica Cirúrgica com o Professor Henrique. A
possibilidade de um primeiro contacto com o doente cirúrgico, a semiologia
abdominal, o bloco operatório e o serviço de urgência, foram determinantes na
minha escolha. A partir deste momento na minha formação, tive a certeza que
iria procurar passar muitas horas da minha vida num bloco operatório e com as
mãos na cavidade abdominal e pélvica. Neste sentido, procurei passar mais tempo
dentro de um bloco e nas especialidades cirúrgicas – este é o meu conselho para
uma escolha mais ponderada e mais direcionada.
O
interesse na Urologia surgiu mais tarde, nas aulas práticas da cadeira e no
contacto com as atividades desenvolvidas por Urologistas. A facilidade com que
éramos integrados, o bom ambiente que por ali imperava e a possibilidade de
ajudar em alguns procedimentos, foram grandes marcas no meu interesse pela
Urologia. Recordo um momento chave nesta escolha – numa das minhas idas à sala
1 do bloco central do CHUC, o Professor Arnaldo perguntou se já tínhamos visto
uma nefrectomia parcial laparoscópica, no tempo cirúrgico de uma
apendicectomia. Permanecemos céticos por 45 minutos, mas ao final deste tempo
tínhamos ido de “pele e pele”, com o tumor cá fora e a sutura laparoscópica
feita. Com esta memória, a partir daí fui juntando mais e mais razões.
Quais as principais
razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta
decisão?
A escolha
de Urologia, em particular no CHUC, foi muito simples. As duas principais áreas
de atuação da Urologia do CHUC, são também as minhas áreas de interesse na
Urologia. Por um lado, sempre sonhei em combater a patologia oncológica,
acompanhar o doente oncológico através do seu diagnóstico, tratamento e
prognóstico. Em particular, a oncologia do sistema urinário pela sua
prevalência e morbimortalidade. A possibilidade de integrar um serviço de fim
de linha no tratamento do cancro urológico, com uma visão holística e uma
abordagem médica e cirúrgica, sempre ditou o meu entusiasmo por esta
especialidade.
Em
segundo lugar, a oportunidade de integrar o serviço de transplantação renal. A
participação nas colheitas multi-órgão, as ajudas em transplantes de dador vivo
e dador cadáver. A possibilidade de participar no legado deixado pelo Professor
Linhares Furtado em Portugal.
Não
menos importante, fiz esta escolha pela possibilidade de aprendizagem com
grandes médicos e cirurgiões, num ambiente familiar e de trabalho em equipa.
Mais ainda, fiz esta escolha pela possibilidade de aprender numa boa “escola”
cirúrgica.
Quais são os principais
locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
Enfermaria: Seguimento dos doentes no pré e pós operatório;
internamentos para realização de quimioterapia e internamentos por patologia
urológica urgente;
Bloco operatório central;
Bloco
operatório periférico: cistoscopia; biópsias
prostáticas; colocação e troca de cateteres de nefrostomia; entre outros;
Urgência: abordagem à patologia urológica urgente;
Consulta externa;
Reunião de Serviço e Reuniões
Multidisciplinares: imagiologia e
radioterapia;
Hospital de Dia de Oncologia;
Litotrícia;
Exames Urodinâmicos;
Exames Urorradiológicos;
Como descreveria o
ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/ enfermeiros/doentes nos
serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos
experientes?
Existe
uma excelente relação entre médicos internos e especialistas. Impera o espírito
de equipa e de entreajuda, com grande facilidade para discussão de casos
clínicos e ajuda na melhor orientação dos doentes. Existe abertura na discussão
de casos de oncologia em reuniões de decisão terapêutica, nas quais os internos
participam ativamente.
No
bloco operatório central e periférico, existe uma ótima relação entre médicos,
enfermeiros e auxiliares, imperando a boa disposição e bom ambiente de
trabalho.
Considera que existe
idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade
de ensino?
Sim,
existe idoneidade completa. Neste momento, só existe internato de Urologia em
Hospitais Centrais, com o intuito de garantir uma formação semelhante a todos
os internos do país. A qualidade do ensino em Portugal, especificamente na área
da Urologia, é muito boa, acima da média europeia. Existem muitos países onde a
formação cirúrgica é muito difícil, com dificuldade em atingir números mínimos
de cirurgias.
Existem
algumas valências nas quais os internos procuram estagiar fora, visando estar
perto dos melhores em determinada área ou técnica.
Com
o advento da robótica, um dos ponto fracos do CHUC é a inexistência de robôs.
Existe, no seu
trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro,
formação complementada noutro centro, …)?
Definida
em decreto de lei, está a obrigatoriedade em realizar 1 ano de estágio em
cirurgia geral e 2 meses em cirurgia pediátrica. Os restantes estágios são
opcionais e dependentes dos interesses de cada interno - 4 meses que podem ser
passados noutras especialidades médicas ou cirúrgicas. Estes podem, também, ser
aproveitados para a realização de estágios fora do país, em centros de
referência de determinadas áreas da Urologia.
Como descreveria um dia
de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de
dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Um
dia de trabalho pode variar muito. Geralmente, começo o dia por volta das 7h50,
vejo o meu setor da enfermaria e os doentes que operei. Às segundas, terças e
quintas, existe reunião de casos clínicos/ decisão terapêutica às 8h15. Durante
a manhã, podemos ter atividade programada no Bloco central, Bloco periférico ou
na Unidade de Cirurgia de Ambulatório. Durante a tarde, continuamos o trabalho,
podendo estar escalados em prolongamentos no bloco central, estudos
urodinâmicos ou unidade de cirurgia de ambulatório. Os internos, geralmente,
têm um período de consulta por semana e um ou mais tempos de urgência.
A
Transplantação renal poderá acontecer em qualquer altura do dia ou da noite...
Ou
seja, é difícil definir um dia tipo.
O
nível de esforço e dedicação é elevado, mas a recompensa e felicidade são
também igualmente elevadas.
Considera que esta
especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E
relativamente à vida pessoal/familiar?
Sim,
com organização existe tempo para tudo. A grande maioria de nós pratica
desporto e tem hobbies, fora do hospital. Existe tempo para a vida pessoal,
familiar e social, mas por vezes existe menos tempo para dormir.
Relativamente à carga
horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as
restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão,
o que varia, ao longo dos anos de internato?
Existe
uma carga horária pesada, como em qualquer outra especialidade cirúrgica.
Facilmente se excedem as 40h de trabalho semanal. Mas numa especialidade
cirúrgica, há tendência para a correlação entre o número de horas de exposição
e a prática.
Nos
primeiros anos, realizamos urgência apenas durante o dia, sendo que a partir de
metade do internato passamos a fazer noites.
Ao
longo do internato, vamos recebendo mais tempos de consulta.
Como interno, como é o
seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Existe
uma curva de aprendizagem a cumprir, com tempos diferentes consoante a
dificuldade da técnica ou gesto clínico. Rapidamente se aprende a executar uma
cistoscopia rígida ou flexível, ficando independente tecnicamente. Por outro
lado, uma cirurgia mais complexa faz-se em equipa e, muitas vezes, não se é
independente, mesmo como especialista. É uma aprendizagem contínua.
No
geral, após os 6 anos de internato, os internos estão confortáveis e
independentes para realizar a maioria/totalidade das técnicas, cirurgias e
abordagens ao doente.
Quais as subespecialidades
pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como
acontece o processo?
Existem
as subespecialidades já mencionadas. Todos os urologistas sabem executar a base
de todas as áreas da Urologia, no entanto, existe cada vez mais tendência para
a subespecialização. A escolha dependerá da vontade do próprio em investir numa
área em específico, da existência dessa área no hospital em que trabalha ou,
até mesmo da sua criação.
Como acontecem os
momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e
maiores dificuldades?
Os
momentos de avaliação são exames orais anuais, com defesa do curriculum
cirúrgico, científico e pedagógico. As datas são definidas pelos internos, em
conjunto com a direção do serviço. Geralmente, decorrem em Março de cada ano.
A
Urologia é teoricamente exigente, envolvendo um domínio das componentes médica
e cirúrgica. As guidelines europeias de Urologia e a sua atualização
anual, mantêm-nos a par da evolução da ciência e técnica.
Todavia,
considero que a avaliação não é só pontual. O melhor tratamento dos doentes
põe-nos diariamente à prova, envolvendo um estudo contínuo de conteúdos
teóricos, a par de um treino técnico exigente.
Qual diria ser a maior
dificuldade que encontra nesta especialidade?
É
difícil definir a maior dificuldade. É sumamente impossível dominar, médica e
cirurgicamente, todos os campos da Urologia. Desta dificuldade nasce a
subespecialização.
Quais os principais
fatores positivos na sua especialidade?
Semiologia rica;
Grande variedade de técnicas cirúrgicas: cirurgia aberta,
endoscópica, laparoscópica, robótica, percutânea;
Independência no diagnóstico: Endoscopia; radiologia;
ecografia, urodinâmicos;
Cientificamente estimulante e com evolução constante;
Bons resultados, bons cirurgiões;
Bom ambiente, espírito de equipa;
Transplantação renal;
Oncologia.
Como descreveria a sua
especialidade em relação à possibilidade de:
enveredar pela carreira
investigacional;
constante inovação
científica;
Existe
possibilidade de aliar a carreira clínica à científica e investigacional.
Existem alguns urologistas a realizar programadas de doutoramento e a
participar ativamente em ensaios clínicos e outros projetos de investigação.
Uma carreira puramente de investigação não me parece fazer sentido numa
especialidade cirúrgica.
Existe
uma constante inovação técnica e científica, tornando a Urologia altamente
estimulante.
Escolhia novamente esta
especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as
principais surpresas?
Sem
qualquer dúvida. A corresponder e a superar.
Diria que é necessário
mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta
especialidade?
É
uma pergunta para responder com mais maturidade, dentro de 10 ou 20 anos.
Quando estiver a olhar do lado do especialista, com experiência na formação dos
mais novos. Pessoalmente, tendo a acreditar que o trabalho compensa. A cirurgia
envolve treino, repetição e disciplina. Mas ao mesmo tempo, envolve rapidez na
decisão sobre o imprevisto - aí entra o talento, a coragem e capacidade de
lidar com a pressão.
É
uma pergunta para o milhão de euros.
Tem alguma consideração
importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
O
antigo provérbio “fazer das tripas coração”, é sinónimo de superar e vencer
adversidades julgadas impossíveis. A Urologia ainda não faz o impossível, mas é
a única especialidade que é capaz de transformar um órgão noutro diferente -
fazer das tripas bexiga.
A
escolha da especialidade é de extrema importância e, muitas vezes, será
fundamentada pelas experiências pessoais e pessoas que as compõem. Desta forma,
devem procurar investir, no vosso percurso académico, tempo nas especialidades
que vos tiram o sono.
Texto redigido com a
ajuda de Dr. Vasco Quaresma, médico interno de Formação Específica em Urologia no
CHUC