A
ortopedia e traumatologia é olhada em Portugal como uma especialidade de
grunhos, de tipos que não estudam, que pouco sabem de medicina, que não se
interessam pelos doentes e que só lidam com serras e martelos. Então na FMUC o
contacto que temos com as áreas de ação ortopedia é no mínimo inferior a zero…
Isto é assim fruto de um contexto histórico que não vou explicar, mas posso-vos
garantir que a realidade é o oposto. Não é por nada que é a especialidade mais
desejada em imensos países, juntando autênticos crânios com conhecimento
médico, cirúrgico e em biomecânica.
Ser
médico desta especialidade significa adorar cirurgia. É ter pela frente uma
prática futura com um leque de procedimentos infindáveis e em constante mudança
fruto do avanço dos biomateriais, conhecimento de biomecânica e terapêuticas
regenerativas e da crescente necessidade dos cuidados de ortopedia não só pelo
envelhecimento da população mas também pelo número cada vez maior de praticantes
de desporto (desde a pessoa que só faz manutenção a passar pelo atleta de alta
competição ou pelos de meia idade que acham que têm um organismo de 16 anos). É
ter a capacidade: de resolver situações emergentes, de stress e life saving
como no doente politraumatizado; resolver deformidades em crianças, adolescentes
e adultos que condicionam a vida dos mesmos; tratar lesões desportivas ou degenerativas
que comprometem a qualidade de vida ou capacidade de execução de tarefas
laborais. É ter a capacidade de literalmente alterar a vida de uma pessoa, seja
porque ela subitamente mudou com um acidente, seja porque ela se tem
deteriorado progressivamente até ao ponto de ser impossível viver com qualidade.
Realizamos
cirurgias que exigem força, martelos, serras, placas e parafusos, mas também realizamos
cirurgias delicadas como reconstruções ligamentares, procedimentos
artroscópicos, discetomias cervicais. Tanto operamos fémures como operamos
falanges, operamos ancas como operamos punhos, operamos colunas como operamos
mãos. Operamos cirurgia emergente, urgente e eletiva. Tanto agimos sobre stress
e em contrarrelógio, como operamos sentados a ouvir música. Somos possivelmente
a especialidade que lida com a maior diversidade de procedimentos cirúrgicos e dispositivos
médicos, sendo por isso não só desafiante, mas ao mesmo tempo exigente.
Assim,
atuamos em contexto hospitalar, seja em urgência externa seja em atividade
assistencial em consultas e bloco operatório e enfermarias, mas também atuamos
em clínicas com doentes que procuram melhoria de qualidade de vida ou sinistrados
de acidentes de trabalho ou desportivos. Lidamos com todo o tipo de doentes, de
todas as idades e em todo o tipo de cenários e isso exige de nós uma capacidade
de adaptação constante e necessidade permanente de saber comunicar com os
doentes.
Em que momento do seu
percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Durante
o curso cedo me inclinei para as áreas cirúrgicas e quando terminei o curso
estava a considerar seriamente cirurgia geral.
No
entanto, durante o ano comum realizei um estágio em ortopedia e rapidamente percebi
que seria a escolha ideal para mim.
Quais as principais
razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta
decisão?
Adorar
cirurgia, anatomia, atividade física, o facto de ter uma quantidade incrível de
diferentes procedimentos cirúrgicos e patologias e poder ter ao mesmo tempo
qualidade de vida. A possibilidade de atuar em diferentes cenários e com
diferente tipo de doentes permite que tenhamos uma atividade nada rotineira
(dentro do possível claro) e todo um leque de escolha de subespecialidade ou
tipo de prática clínica - hospitalar ou extra-hospitalar.
Para
além disso, e não menos importante, a empregabilidade da especialidade. Lidamos
com uma área do saber que mais ninguém domina e que é essencial - somos
precisos em hospitais distritais ou centrais, clínicas, clubes desportivos,
seguradoras, etc. Assim temos a possibilidade de trabalhar em exclusividade no
público ou privado ou nos dois sectores (por enquanto) e escolher se queremos
trabalhar imenso ou ter uma vida mais tranquila dependendo do objetivo de
carreira de cada um.
Quais são os principais
locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
Atualmente,
estou numa fase da carreira muito peculiar. Faço parte duma percentagem mínima
de ortopedistas portugueses que decidiram realizar uma subespecialização fora
de Portugal, integrando um programa de formação que inclui uma vertente clínica
e de investigação - clinical research fellowship. Este tipo de programas
é quase obrigatório no pós especialidade em país como os Estados Unidos,
Canadá, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e tem ganho na última década
muita popularidade em países como França, Alemanha, Bélgica, Holanda. São
certificados pelos colégios de ortopedia dos países organizadores e pelas
sociedades de ortopedia (chamados short term period of surgical training)
e podem ser organizados por clínicas/centros de excelência e referência ou por
centros universitários. A realidade da organização dos sistemas de saúde nestes
países em nada tem a ver com a portuguesa por isso o quotidiano e tipo de atividade
é muito diferente e altamente especializada. Estes programas têm uma duração
variável de 6 meses a 1 ano sendo que não é raro serem extensíveis a 2 anos ou
mesmo mais tempo quando o fellow decide realizar um master ou PhD em
centros universitários associados às clínicas/hospitais. Basicamente candidatei-me
um ano antes de concluir a especialidade e fui aceite e ingressei já
especialista num programa de subespecialização em cirurgia do joelho em Sydney
(Austrália) e agora em cirurgia do membro inferior em Adelaide (Austrália).
Em
ambos os programas trabalhei/trabalho numa clínica que é centro de referência
nestas cidades/regiões tendo por isso uma casuística extremamente elevada no
que toca a patologias desta área. A clínica é composta por um grupo de
ortopedistas que se juntaram para trabalhar em grupo e depois os doentes são
operados em diversos hospitais públicos e privados (o sistema de saúde australiano
é muito diferente do nosso). Assim, o meu trabalho clínica passa por assistir e
fazer consultas, operar supervisionado ou ajudar em procedimentos cirúrgicos e
colaborar no seguimento pós-operatório dos mesmo. Não tenho de momento qualquer
atividade de urgência e o trauma que operamos é essencialmente mono trauma –
isto porque eu estou a realizar uma subespecialização direcionada para
artroplastias e traumatologia desportiva. Aliada a esta atividade, realizo
investigação clínica nesta área, passando pela análise de doentes operados, elaboração
de bases de dados para estudos prospetivos, elaboração de projetos, publicação
de artigos e realização de apresentações, estudos biomecânicos e uma constante
atualização sobre temas da área (estudar artigo, etc). Portanto, é uma rotina
bem diferente da esmagadora maioria dos recém-especialistas.
Como descreveria o
ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos
serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos
experientes?
Para
tentar ser útil vou dar o feedback daqui e do serviço onde estava em Portugal.
Sobre o meu serviço atual… julgo que todos temos uma imagem do povo Australiano
como sendo relaxado e boa onda. Pois bem é mesmo isso. Tratamo-nos todos por
“tu”, estamos todos ao mesmo nível (hierarquia e respeito existe sem
necessidade de imposições ou tratamentos diferenciados) e todos pela mesma
causa: prestação de cuidados de saúde de qualidade. Sem uma filosofia de equipa
não se chega a lado nenhum, então na minha especialidade isso é mesmo
paradigmático: administrativas, cirurgiões, médicos internistas, sports physicians,
enfermeiros, fisioterapeutas, preparadores físicos, tudo tem que estar a
funcionar em cadeia. Uma coisa é termos respeito uns pelos outros e
reconhecermos quem manda e coordena, outra coisas são hierarquias bacocas e que
apenas destroem uma relação de cooperação e confiança.
Em
Portugal no meu serviço no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central
(Hospital de Curry Cabral e Hospital de São José) a relação entre os
especialistas e os internos era excelente olhando ao panorama nacional. A ortopedia
é de um modo geral uma área com bom ambiente. Claro que existia uma hierarquia
rígida e que alguns especialistas gostavam de a vincar e é óbvio que o volume
trabalho dos internos era altamente desproporcional versus o dos especialistas,
mas havia bom ambiente entre a maioria e imensas oportunidades de crescimento
cirúrgico, um treino muito prático e hands-on. Desde cedo somos muito
autónomos e ninguém faz baby-sitting. Tínhamos que ser autodidatas e “fazermo-nos
à vida”, mas isso faz parte dos internatos cirúrgicos. E a verdade é que quando
precisávamos de ajuda existia sempre alguém disponível para ajudar. Entre os
internos o ambiente era fora de série: uma relação muito estreita de amizade e
zero competitividade entre nós. Havia espaço para todos crescermos a operar,
imensas horas de urgência, consulta e bloco operatório partilhadas irmãmente e
fora do hospital foram muitas as jantaradas.
Considera que existe
idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade
de ensino?
Vou
falar apenas do serviço onde fiz o internato porque é isso que interessa para a
questão. Julgo que o serviço onde estava tem idoneidade para todas as
valências. Claro que, à semelhança da esmagadora maioria dos hospitais, tem uma
percentagem muito elevada de cirurgia de trauma comparativamente à cirurgia
ortopédica, no entanto olhando ao panorama geral era bem acima da média.
Tínhamos: 3 salas de bloco operatório no Hospital de Curry Cabral dedicadas à
ortopedia e traumatologia que funcionavam até às 15:00 e outras duas a
funcionar durante a tarde em cirurgia adicional (artroplastias); uma sala
aberta 12h por dia 3 vezes por semana para cirurgia de ambulatório no Hospital
de Curry Cabral; 1 sala todos os dias até às 15:00 só para traumatologia no
Hospital de São José e mais outra sala dedicada apenas à traumatologia Vertebro-medular
4 vezes por semana; 1 sala até às 15 horas todos os dias dedicada à ortopedia
infantil no Hospital Dona Estefânia (o serviço de ortopedia infantil é
independente, não faz parte do serviço de ortopedia); blocos operatórios da
urgência externa polivalente do Hospital de São José de do Hospital de Dona
Estefânia abertos naturalmente todos os dias e 24h por dia. Ao todo tínhamos
mais de 90 camas para cirurgia de adultos e mais vinte e qualquer coisa para
ortopedia pediátrica. Gabinetes de consulta não faltavam, reuniões semanais
científicas/ atualidades do serviço.
Sobre
a qualidade de ensino, sublinho o que disse previamente: o internato não é baby-sitting.
Portanto se a questão da idoneidade for ter médicos disponíveis a toda a hora
para explicar coisas, aulas, etc então isso é apenas utópico. Acho que a
qualidade do ensino que me deram foi excelente quer na prática cirúrgica quer
na aquisição de capacidades e valências clínicas. Havia ao mesmo tempo
responsabilização pelos nossos atos e decisões, e colaboração dos
especialistas, análise do nosso percurso e prática clínica. Éramos anualmente
submetidos a dois exames (um teórico e de análise curricular e outra com um
doente) e obrigados a apresentar temas de revisão e casos clínicos.
Em
suma, foi me proporcionado um excelente internato médico pelo serviço de
ortopedia e traumatologia do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central.
Já não trabalho lá, não teria qualquer necessidade de estar a dizer por dizer.
Existe, no seu
trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação
complementada noutro centro, …)?
Sem
dúvida, até porque isso está preconizado no nosso currículo de formação: a
realização opcional de 3 meses opcionais contínuos/separados em centros de
referência em ortopedia, nacionais ou internacionais. Porém, os estágios
curriculares obrigatórios tinham que ser realizados no meu centro hospitalar
por determinação da administração a não ser que não existisse capacidade formativa/disponibilidade
(por exemplo, o estágio de neurocirurgia tinha que o fazer no meu centro hospitalar).
No
meu caso realizei 4 estágios opcionais de um mês cada em cirurgia do joelho: em
São Paulo, Barcelona, Londres, Oxford. Claramente mudaram a minha forma de
pensar e foram cruciais no meu desenvolvimento, não só pela aprendizagem em
ortopedia, mas também pela rede de contactos e por me permitirem ver e entender
que existem diferentes formas de organizar os sistemas de saúde. É bom sair do nosso
país para perceber no terreno que não existe só uma maneira de fazer e
organizar as coisas - pegamos no que vimos, escolhemos o que mais gostámos e
tentamos aplicar na nossa prática clínica e contribuir uma criar uma rede de
prestação de cuidados de saúde mais eficaz. Aconselho vivamente seja qual for a
especialidade a viajarem e fazerem estágios internacionais. Já para não falar
da experiência pessoal que é viver/ trabalhar além-fronteiras.
Como descreveria um dia
de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de
dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Como
já referi uma das coisas mais únicas e interessantes é que é uma especialidade
que oferece um leque de oportunidades de carreira muito diversificada. Depende
muito se trabalhas apenas num hospital público, apenas numa clínica privada ou
se fazes ambas as coisas - és tu que decides o quão ocupado queres estar
consoante o teu objetivo de carreira, mas garantidamente que se queres atingir
a excelência vais ter uma vida muito preenchida mesmo (o que não é
necessariamente mau se gostas do que fazes). Em vez de falar de um modo geral
vou explicar como foi no internato e como é agora no meu fellowship.
No internato
vou descrever a minha semana sucintamente. Todos os dias, tirando o de
urgência, chegava cedo ao serviço e revia rapidamente os pós-operatórios e
resolvia situações mais urgentes ou casos que tivessem sido internados e ainda
não tivessem sido vistos, e ia então para o bloco operatório ou consulta.
Quando acabasse uma destas atividades ia ver os doentes que tinha a meu cargo
com calma e planificar a atividade do dia seguinte (programar cirurgias, pensar
sobre casos que tivessem aparecido na consulta ou ver o que tinha que resolver
na enfermaria no dia seguinte). Dito isto, a semana era: 2ª feira urgência de
dia ou então bloco operatório de dia e urgência noite; 3ª feira bloco
operatório ou saída de banco; 4ªf bloco operatório e consulta; 5ª feira bloco
operatório ou enfermaria; 6ª feira reunião de serviço (podia ter que apresentar
temas ou casos) e bloco operatório ou enfermaria. Um período de urgência diurno
ou noturno 3 fins-de-semana por mês (contando com a sexta-feira claro).
No
meu fellowship: resumindo é operar todos os dias, uma tarde de consulta
por semana, mas não todas as semanas, e nos “buracos” fazer investigação
clínica/ estudar - sim dá uma média diária de 10- 12horas uns 4 dias por
semana, um dia umas 4-6horitas e fins de semana livres - zero urgência, zero trabalho
às tantas da matina.
Sobre
a segunda pergunta isso é altamente variável e pessoal. Se queres ser career
focus e atingir a excelência esperam-te muitas horas de trabalho, muitas
pestanas queimadas, horas de stress, mas também alta realização pessoal porque
à partida se és career focus gostas do que fazes e a remuneração também
é boa comparativamente à maioria das especialidades. Se queres ser um bom
clínico, mas não queres ter uma vida focada no trabalho é possível teres uma vida
nine to five e pacífica, inclusivamente escolher não ter a vertente
pública hospitalar não realizando urgência e mantendo uma boa remuneração. Tudo
depende do que cada um quer para a sua vida.
Considera que esta
especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E
relativamente à vida pessoal/familiar?
Mais
uma pergunta altamente pessoal e vai de encontro ao que escrevi. Tu escolhes a
vida que queres ter. A ortopedia dá te essa possibilidade na certeza, porém,
que é impossível na maior parte da carreira procurar a excelência e mil
hobbies.
A
procura da excelência implica estudo, muitas consultas, muitas horas de bloco
operatório pois só com casuística e muito estudo se faz um excelente cirurgião.
Mais a mais na ortopedia há uma necessidade de subespecialização para se chegar
a esse patamar. Isso não é compatível com um trabalho nine to five com
uma agenda pessoal altamente diversificada. Agora não é sinónimo de não ter uma
vida pessoal: quanto mais ocupado estás mais tempo tens, parece um
contrassenso, mas é uma realidade. Pessoalmente sou bastante career focus,
até porque encaro a minha profissão como algo que gosto muito de fazer e não me
custa nada trabalhar nesta área. Dito isto sou um tipo normal e adoro fazer mil
outras coisas e encontro tempo para as minhas jantaradas com amigos, fazer
desporto, ver a bola, atividades outdoors e faço sempre a minha viagem de 3
semanas algures por esse mundo fora. E a verdade é que agora faço-o com mais
frequência que muita gente, mas também não paro em casa no sofá e faço por estar
ocupado.
Se
por outro lado quiseres ser um bom cirurgião e ter uma vida mais descansada e
preenchida com outros hobbies também dá perfeitamente.
Um
fator muito relevante para a vida familiar e qualidade de vida tem três
palavras: serviço de urgência. É sinónimo de fins-de-semana a trabalhar,
noites, trabalho por turnos, feriados e condiciona a marcação de férias e de
agendamento de cenas que queiras fazer com amigos e família. Em ortopedia, diria
que em Portugal 80% dos ortopedistas com menos de 60 anos faz urgência ou em
presença física ou em prevenção. Para quem adora urgência são boas notícias,
para quem não gosta não são e existem especialidades melhores…
Para
finalizar dizer que temos tendência como portugueses a ser fatalistas, e como
seres humanos a falar em “preto e branco” ou “copo cheio ou copo vazio”. A
carreira é feita por etapas e por escolhas. Inicialmente, a tendência é para
nos metermos em tudo, dedicarmo-nos muito ao trabalho e pensar que vai ser
sempre assim…, mas não vai e não tem que ser assim. Muitos começaram assim e
construíram uma carreira, uma base e depois acionam o travão, ou então não construíram,
mas apaixonaram-se por outras coisas na vida e acalmam. Outros serão sempre workaholics.
Relativamente à carga
horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes
obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que
varia, ao longo dos anos de internato?
Carga
de trabalho é pesada como em todas as especialidades cirúrgicas e durante o
internato ainda mais. Quem pensa que um internato cirúrgico de qualidade que
confira autonomia após a sua conclusão se faz com 40h de trabalho semanal está
redondamente enganado. Claro que as horas extra não urgência deveriam ser
remuneradas e não são, e que essas horas não são obrigatórias, mas deviam ser.
Para dominar os skills cirúrgicos e sobretudo a capacidade de decisão o
estudo não chega. São necessárias horas e horas no terreno a captar o saber
empírico dos especialistas, a aprender com a experiência pessoal, a ver
complicações e como lidar com elas etc. Portanto um dos meus conselhos básicos
sempre foi: quem não tem a certeza se quer uma área cirúrgica mais vale a não
escolher uma porque é duro quando se gosta e quando não se gosta é muito muito
duro e não faz sentido nenhum.
Horas
de urgência o meu serviço era exemplar: 12h ordinárias + 12h extraordinárias,
não mais que isso (embora no início do internato tivesse feito urgências de
24h) e sempre respeito pelo descanso compensatório: não é para ir trabalhar de
saída de banco, só fazemos asneira e não aprendemos nada - segurança para nós e
para os doentes. Agora claro, era urgência 3 em 4 fins-de-semana de um mês e maioritariamente
em turnos noturnos com imenso trabalho - hospital central fim de linha.
O
volume de trabalho não muda durante o internato, pelo contrário aumenta e com
ele a responsabilidade. No entanto, a forma como os especialistas olham para ti
muda progressivamente consoante o teu percurso. Se fores um(a) bom/boa
médico(a) vão reconhecendo o teu valor e respeitando a tua opinião e o teu espaço.
Como interno, como
é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Muita
autonomia e com isso muita responsabilidade e trabalho. Mas no fim ficas com
melhor formação e com excelente bagagem. Nunca te esqueças que a maior valência
de um médico é não só a capacidade de realização de atos, mas também a
capacidade de tomada de decisão - tudo vem com o estudo e com o saber empírico
do nosso trabalho e dos restantes elementos das equipas.
Quais as
subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta
escolha? Como acontece o processo?
A
especialidade tem duas grandes divisões: ortopedia, traumatologia. Dentro da
traumatologia inclui- se tudo o que são fraturas e na ortopedia as restantes
coisas (o que não é totalmente correto porque uma lesão desportiva ligamentar
pode ser traumática, mas de um modo geral é assim que se considera).
Um
ortopedista que se queira subespecializar pode: fazer ortopedia e escolher uma
região anatómica; fazer só traumatologia com exceção da vertebro-medular; fazer
ortopedia e traumatologia de uma região anatómica. Varia muito de país para
país, por exemplo nos USA e Canadá existe o conceito desta divisão: cirurgiões
que fazem só artroplastias mas de todas as regiões anatómicas; cirurgiões que
fazem só traumatologia desportivas mas de todas as articulações; cirurgiões que
fazem só coluna vertebral; cirurgiões que fazem só cirurgia de trauma. Olhando
ao nosso país e Europa, o mais comum é agrupar nas seguintes áreas:
•
cirurgia da coluna
•
cirurgia do ombro e cotovelo
•
cirurgia do punho, mão e cotovelo
•
cirurgia do membro superior
•
cirurgia da anca
•
cirurgia do joelho
•
cirurgia do pé e tornozelo
•
cirurgia do membro inferior
•
cirurgia oncológica
•
ortopedia pediátrica
Em
Portugal, só agora vai existindo de uma forma mais comum a subespecialização,
sendo que, com a exceção da ortopedia pediátrica, não existem subespecialidades
ou programas de formação definidos. Basicamente os cirurgiões vão orientando a
sua carreira para uma das áreas e vão estudando, procurando casuística nessa
área e realizando cursos. Para que seja possível verdadeiramente subespecializarem-se
é necessário que façam parte de uma clínica ou serviço que tenha essa estrutura
organizacional e ao dispor profissionais que cobram todas as áreas.
Naturalmente, é impossível essa realidade em todas as localidades do país, pelo
que muitos ortopedistas fazem um pouco de tudo e a esmagadora maioria tem que
saber resolver todo o trauma tirando o que podem referenciar para grandes centros
(trauma articular complexo, politraumatizados, cirurgia oncológica, cirurgia
pediátrica excluindo o trauma).
Como acontecem os
momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores
dificuldades?
Quando
era interno existiam dois momento de avaliação por ano (Fevereiro e Outubro):
um para avaliação curricular e teórico sendo um exame oral; outro com um doente
em que fazíamos uma avaliação completa do doente, história clínica clássica,
diagnóstico, proposta terapêutica e prognóstico e claro que todos esses passos
eram escritos e bem justificados, depois cada parte era discutida com o júri.
Esta história clínica atualmente já não existe e foi substituída por discussão
de casos clínicos selecionados pelo júri. O júri é composto por 3 elementos: o
diretor de serviço, o tutor e outro elemento designado do corpo clínico. A nota
final de cada ano tinha como base estes dois períodos de avaliação, a avaliação
das apresentações feitas no serviço ao longo do ano e uma análise subjetiva da
prestação do interno. Estas notas entram depois para a nota final do internato
e tem um peso (já não me recordo qual) na nota do exame final com o Colégio da Especialidade.
Sobre
o grau de dedicação… é preciso estudar, claro, porque ninguém quer fazer má
figura. Se queres ganhar o respeito dos teus pares tens que ser sério e
demonstrar que sabes o que andas a fazer. Infelizmente, o tempo de preparação é
zero, isto é, ninguém te dá menos trabalho ou te dispensa de trabalho porque
tens exame. Tens que te orientar e isso é o mais difícil.
Qual diria ser a maior
dificuldade que encontra nesta especialidade?
Ter
que fazer urgência. Para mim, de longe a pior coisa. Gosto muito do trauma
eletivo, mas odeio fazer serviço noturno, trabalhar aos fins-de-semana,
feriados e ter sempre que pensar duas vezes quando combino férias ou atividades
porque posso estar de urgência.
De
resto, para quem gosta de bloco operatório, mas não gosta muito é uma
especialidade terrível porque é onde passamos a maioria do tempo (não é por
nada que em inglês não se ortopedista, mas sim orthopaedic surgeon). Eu
adoro essa atividade por isso isto é um dos grandes pontos fortes da
especialidade para mim.
Quais os principais
fatores positivos na sua especialidade?
Por
pontos e de forma sucinta:
• juntar a arte, conhecimento, engenho para alterar o curso
da vida de uma pessoa
• cirurgia altamente diversificada: do mais preciso e meticuloso
passando por cirurgia pesada; da cirurgia programada, à de urgência ou life
saving
• patologia pediátrica, do
adulto jovem, do desportista e patologia degenerativa - lidamos com todos escalões
etários e com todo o tipo de doentes
• envolve biomecânica que é
toda uma nova área do saber
• dispositivos e técnicas em
constante mudança e aperfeiçoamento
• possível trabalhar em
diferentes cenários: hospital, urgência, clínicas
• empregabilidade: especialidade que lida com uma área
única do saber médico sendo necessária em hospitais distritais, centrais,
clínicas ou seguradoras.
Como descreveria a sua
especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão
de carreira – Do ponto de vista da carreira
hospitalar não sei responder porque isso cheira-me que será algo do
passado tendo em conta o contexto da última década… Mas se se referem à progressão
de carreira no que diz respeito à evolução do conhecimento e aquisição de
valências julgo que há todo um mar de oportunidades. Na minha opinião a
diferenciação é o caminho e acredito numa sociedade onde reina a
meritocracia apesar de não ser o que se verifica. Como já referi existem muitas
áreas de subespecialização em permanente inovação que uma pessoa pode
escolher para se focar e se diferenciar. Portanto há muito espaço para
crescer. Para além disso, existe um mundo de sociedades internacionais que desenvolvem
cursos, webinars, cursos em cadáver, conferências e educação online que
ajudam à aquisição de conhecimento e faculdades.
Enveredar
pela carreira investigacional – Existem
imensas áreas: biomecânica, engenharia de tecidos, regeneração celular,
biomateriais/tribologia, e case control studies (estudos clínicos
multicêntricos, ensaios clínicos randomizados, estudos retrospetivos). Há uma
crescente procura por publicações e a indústria médica de dispositivos e
fármacos investe milhões em ortopedia porque a tendência é de crescimento do
mercado com o aumento da atividade desportiva em todos os escalões etários e
com envelhecimento da população. Para além disso, existem programas de research
fellowships, clinical research fellowships com grupos de engenheiros,
biólogos, e fisiologistas mortinhos para trabalhar com ortopedistas ou internos
da especialidade. Assim, há a possibilidade de manter atividade clínica e ligação
à investigação ou simplesmente enveredar pela carreira de investigação
integrando equipas dedicadas ou mesmo trabalhar como consultor de empresas de materiais.
E claro que existe a vertente do ensino universitário para quem gosta.
Constante
inovação científica – Transcrevendo, há uma
crescente procura por publicações e a indústria médica de dispositivos e
fármacos investe milhões em ortopedia porque a tendência é de crescimento de
mercado com o aumento da atividade desportiva em todos os escalões etários e
com envelhecimento da população. Portanto imensa e constante inovação e quem
não a acompanhar fica para trás.
Oportunidades
de trabalho tanto no setor privado como público – Talvez das especialidades que acaba por ter mais oferta
porque: hospitais distritais e centrais precisam de ortopedistas (especialidade
cirúrgica básica), hospitais privados, clínicas privadas, seguradoras todos
precisam da especialidade e há imensos doentes: acidentes desportivos,
acidentes de trabalho, envelhecimento da população, procura de melhoria de
qualidade de vida/atividade diária.
Dependendo
dos objetivos de carreira de cada um pode ser mais ou menos fácil encontrar
emprego na área/subespecialidade/instituição desejada, mas ele existe.
Escolhia novamente esta
especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as
principais surpresas?
Sem
sombra de dúvida. Totalmente. Surpresas:
• o mundo de subespecialidades, a diversidade áreas a que
me posso dedicar ainda se revelaram maiores do que esperava.
• a importância de integrar o doente no tratamento e
inclusão de todos os profissionais de saúde é a um nível acima do esperado -
sem a colaboração e compliance de todos o sucesso do tratamento fica comprometido;
mas isso torna o dia-a-dia ainda mais dinâmico.
• a velocidade com que novas técnicas e tratamentos são
publicados - a atividade científica em torno da ortopedia e traumatologia é
incrível.
Diria que é necessário
mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta
especialidade?
Diria
que é preciso paixão pelo que se faz e todo o resto vem por acréscimo.
Não
nego que se uma pessoa for desastrada com as mãos (clumsy é a expressão
adequada) ou se não souber lidar bem com o stress e responsabilidade cirúrgica
terá sérias dificuldades. Mas de resto não é necessário grandes talentos ou
capacidades intelectuais: tudo se faz com trabalho, estudo e prática. Uns precisam
de menos horas para atingir certos patamares, mas ser um bom ortopedista está
ao alcance de todos os que se esforçarem e gostarem do que fazem.
Tem alguma consideração
importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Sem
qualquer tipo de paternalismos ou só por estar deste lado já digo a quem está a
tirar o curso:
• desfrutem ao máximo toda a vertente da vida estudantil na
FMUC: são momentos únicos, incríveis e eternos.
• se não sabem o que querem ainda não desesperem porque têm
muito tempo para descobrir e será quando chegarem ao terreno no ano comum que
vão ganhar mais certezas.
• a primeira grande descoberta que terão que fazer passa
por saberem se querem uma área médica, médico-cirúrgica, cirúrgica,
investigação ou se querem uma área que lide pouco com doentes (não existe problema
nenhum nisso, há pessoas que simplesmente não foram talhadas ou não gostam da
relação médico doente - desde que nunca se esqueçam que estão a prestar
cuidados de saúde e que têm que ter sensibilidade e disponibilidade para fazer
alguns sacrifícios).
• escolham não só a pensar no que gostariam de fazer nos
próximos 5 anos, mas sim no que gostariam de fazer nos próximos 30 anos.
• dêem o máximo no estudo do exame para a especialidade,
mas nunca se esqueçam que não é o fim da linha, nem pouco mais ou menos: isto é
um caminho, os estudantes de medicina e os médicos estão habituados a um
caminho direto, reto e plano, mas a vida não é assim. Ela tem obstáculos e há
que virar à esquerda, direita, subir descer e vamos chegar ao objetivo. Não
entrem no fatalismo porque esse é apenas um obstáculo ao vosso sucesso.
Texto redigido com a ajuda do Dr. Francisco Requicha, especialista de Ortopedia
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