Ser
cirurgião é saber resolver a maioria dos problemas, sob pressões, sem ceder. É
conseguir abordar todo o doente cirúrgico, não se focando apenas num órgão ou
sistema, e conseguir dar apoio a várias especialidades médicas e cirúrgicas. É
integrar conhecimentos de vária áreas (cirurgia, oncologia, imagiologia,
anatomia patológica, intensivismo, trauma) e gerir o doente da melhor maneira.
A
Cirurgia atua em várias frentes, desde o bloco operatório à consulta externa,
enfermaria e urgência. É uma especialidade que está presente em todos os
Serviços de Urgência do SNS.
Em que momento do seu
percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Durante
o MIM nunca me despertou interesse as cadeiras de cirurgia geral. Tirando
Propedêutica Cirúrgica, pela semiologia mas também pela forma pragmática de
realizar o exame objetivo. Infelizmente o curso tem pouca prática clínica e tem
muitas limitações a demonstrar realmente o que é a Cirurgia Geral. Penso que
isso tem vindo a mudar. Foi apenas no Internato do Ano Comum, quando fiz o
estágio de Cirurgia e entrei no Bloco Operatório que tive certeza que era o que
queria fazer o resto da minha vida.
Quais as principais
razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta
decisão?
O
que mais me entusiasmou foi a capacidade de resolver um problema ao doente de
forma prática. E de ter possibilidade de curar verdadeiramente o doente. Não
sei se têm noção, mas há muitas poucas ofertas terapêuticas que têm capacidade
de curar. A maioria alivia ou evita a progressão das doenças. A cirurgia pode
curar. E depois sabia que não queria uma área que se dedicasse apenas a um
órgão ou sistema, mas que tivesse uma grande área de atuação (bloco,
enfermaria, urgência) com rotinas diferentes e com possibilidade de fazer
diferentes cirurgias, em diferentes áreas do corpo humano. Além disse, sempre
gostei da área de trauma, cuja Cirurgia Geral é o grande pilar de abordagem ao
politraumatizado.
Quais são os principais
locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
O
local mais frequente é o Bloco Operatório. Contudo, durante o internato
passamos muito tempo também na Enfermaria. Apesar de para os internos de
cirurgia ser “menos agradável” é na enfermaria que podemos observar a
recuperação dos nossos doentes e equilibrar medicamente os doentes (sim,
distúrbios hidroeletrolíticos, nutrição, infeções respiratórias e urinárias). O
cirurgião geral também tem que ser internista.
Como descreveria o
ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos
serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos
experientes?
Do que
diz respeito ao meu internato, ainda não tive possibilidade de sair do CHUC. No
meu ano comum, durante o estágio de Cirurgia, como foi feito num hospital
distrital, com uma equipa mais pequena, o ambiente era diferente.
Atualmente,
o Serviço de Cirurgia Geral do CHUC está dividido em sectores e é um serviço
com um corpo clínico enorme. Daí a parte de a relação interpessoal estar mais
dissolvida. Contudo, são os internos mais velhos que acabam por ajudar mais os
internos mais novos. Na minha experiência foi com os internos mais velhos que
aprendi os gestos básicos. Posteriormente, ao longo do internado, vai-se
sentindo a ajuda dos especialistas.
Considera que existe
idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade
de ensino?
Dado
o campo de atuação da Cirurgia ser enorme, e dada a patologia que abordamos ter
uma prevalência grande, penso que a maioria dos hospitais tem capacidade para
idoneidade. Os que não têm oferecem possibilidade de colmatar essa falha ao
realizar estágios em hospitais centrais. O ensino depende muito do tipo de
hospital (distrital vs. central) e das áreas que esse hospital dispõe. No CHUC,
por exemplo, não fazemos cirurgia da mama (é a Ginecologia) e raramente
cirurgia de patologia venosa ou arterial periférica. Também não temos unidade
de Pé Diabético (está ao cargo da Ortopedia e Cir Vascular). Noutros hospitais,
sem essas especialidades, acaba por ser a Cirurgia Geral a orientar esses
doentes.
Existe, no seu
trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação
complementada noutro centro, …)?
Sim.
Durante o internato somos incentivados a realizar estágio no estrangeiro.
Podemos ter uma área de gosto, mas tem que ser discutido com o orientador de
formação e o Diretor de Serviço.
Como descreveria um dia
de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de
dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Para
ser Cirurgião Geral é necessária dedicação. E é necessário saber que alguns dos
objetivos de vida pessoal vão passar para segundo plano. O trabalho começa,
durante o internato, por orientar a Enfermaria, passar visita, observar e
examinar os doentes e alterar as tabelas terapêuticas. Depois temos o bloco
operatório central ou periférico (cirurgias mais pequenas sob anestesia local).
Em alguns dias não há tempo para almoçar. Temos uma tarde por semana para
consulta externa. Geralmente depois do bloco voltamos à enfermaria para
terminar as altas que não foram dadas de manhã e para ver os resultados dos exames
complementares. Fazemos 12 a 48h de urgência por semana, em turnos de 12h ou
24h, com descanso compensatório no dia seguinte caso seja feita noite ou 24h.
Considera que esta
especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E
relativamente à vida pessoal/familiar?
Sim,
é possível. O segredo está em saber gerir o tempo que temos e saber quando
precisamos de trabalhar e quando temos tempo para “o resto”. Durante o meu
internato continuei a fazer os meus hobbies, embora de forma menos frequente.
Relativamente à carga
horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as
restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão,
o que varia, ao longo dos anos de internato?
A
carga horária é enorme. Há semanas (raras) em que passamos as 80 horas. Fazemos
muitas horas extraordinárias de urgência. Temos trabalhos para fazer, bases de
dados para completar e artigos para escrever. Isto é transversal em todos os
hospitais, em todas as especialidades. Há locais com mais ou menos necessidade
de “trabalho extra”. Ao longo do internato aumenta a responsabilidade. As horas
de urgência “extra” acabam por ser similares em todos os anos.
Como interno, como
é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
É um
fator que se sente ao longo do internato. No final do primeiro ano deveremos
ser capazes de colocar acessos venosos centrais ou drenos torácicos sem
supervisão. E ainda de realizar pequenas cirurgias (sob anestesia local). Ao
longo do internato vamos fazendo cada vez procedimentos mais complexos com
ajuda de um cirurgião. Às vezes, em procedimentos mais simples
(apendicectomias, abcessos perianais) os internos mais velhos ajudam os mais
novos no bloco operatório, com um cirurgião a supervisionar.
Quais as
subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta
escolha? Como acontece o processo?
A
vantagem da Cirurgia Geral é a diversidade de áreas nas que podemos
diferenciar. Isso depende do tipo de Hospital. Quanto mais central, mais a
tendência para subespecialização. A grande maioria dos doentes terá patologia
do sistema digestivo; dentro desta, há subespecialidades em cirurgia
esofago-gástrica, cirurgia bariátrica, cirurgia hepatobiliopancreática,
cirurgia colorretal, transplantação hepática; há ainda cirurgia endócrina
(tiróide, paratiróide, suprarrenal); cirurgia da mama; cirurgia de emergência e
politraumatizado; e, em alguns hospitais periféricos, pequenos procedimentos de
urologia, ginecologia, cirurgia maxilo-facial e cirurgia vascular. Há unidades
ainda de Parede Abdominal Complexa e Pé Diabético. O processo dá-se ao longo do
internato, depende das oportunidades. Contudo, ao acabarmos o internado, podemos
apenas ter vaga num hospital numa determinada área… Portanto, depende muito da
oferta de ano para ano.
Como acontecem os
momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e
maiores dificuldades?
No
CHUC há um exame anual (geralmente no primeiro trimestre) com júri constituído
pelo Diretor e pelo Orientador de Formação. Nos últimos anos realiza-se uma
história clínica. Nos outros anos apenas é discussão curricular com perguntas
teóricas orais. O estudo deve ser feito ao longo do internato. Contudo, muitas
vezes não há tempo para ler todas as guidelines e artigos que são precisos. Nas
semanas antes do exame gerimos o tempo de forma a fazê-lo.
Qual diria ser a maior
dificuldade que encontra nesta especialidade?
O
nível de dedicação e horas de sono em falta.
Quais os principais
fatores positivos na sua especialidade?
Autonomia
precoce, rotinas diárias diferentes, vários campos de atuação.
Como descreveria a sua
especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão
de carreira – infelizmente, é como em
qualquer outra especialidade e os concursos para isso são poucos.
Enveredar
pela carreira investigacional – É
possível fazer investigação, especialmente num Centro Hospitalar e
Universitário, estando ligado à Faculdade respetiva.
Oportunidades
de trabalho tanto no setor privado como público – Felizmente também, dada a prevalência da patologia,
penso haver sempre lugar para a cirurgia geral no sector privado.
Escolhia novamente esta
especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as
principais surpresas?
Sim,
sem dúvida. É a melhor especialidade das 50 e tais. Penso que depende de caso
para caso, mas integrei-me bem no meu Serviço. O importante é trabalhar e
dedicar-se. Há dias menos bons, como em qualquer trabalho. O importante é
aprender com isso.
Diria que é necessário
mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta
especialidade?
Sinceramente,
ambos. Há pessoas que não têm destreza para cirurgia. Ninguém nasce ensinado, e
muitas das técnicas vão-se aperfeiçoando ao longo dos anos. É importante
treinar, ler e estudar antes das intervenções. Não é preciso ter nenhum talento
inato para operar, mas há que reconhecer limitações.
Tem alguma consideração
importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
A
experiência do internato varia de hospital para hospital. O importante é
perceber que querem mesmo ser Cirurgiões Gerais. Se for esse o caminho, tudo é mais
fácil.
Texto redigido com a ajuda do Dr. João Simões, interno de Cirurgia Geral no CHUC
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