1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #7 – Cirurgia Geral

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
Ser cirurgião é saber resolver a maioria dos problemas, sob pressões, sem ceder. É conseguir abordar todo o doente cirúrgico, não se focando apenas num órgão ou sistema, e conseguir dar apoio a várias especialidades médicas e cirúrgicas. É integrar conhecimentos de vária áreas (cirurgia, oncologia, imagiologia, anatomia patológica, intensivismo, trauma) e gerir o doente da melhor maneira.
A Cirurgia atua em várias frentes, desde o bloco operatório à consulta externa, enfermaria e urgência. É uma especialidade que está presente em todos os Serviços de Urgência do SNS.

Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Durante o MIM nunca me despertou interesse as cadeiras de cirurgia geral. Tirando Propedêutica Cirúrgica, pela semiologia mas também pela forma pragmática de realizar o exame objetivo. Infelizmente o curso tem pouca prática clínica e tem muitas limitações a demonstrar realmente o que é a Cirurgia Geral. Penso que isso tem vindo a mudar. Foi apenas no Internato do Ano Comum, quando fiz o estágio de Cirurgia e entrei no Bloco Operatório que tive certeza que era o que queria fazer o resto da minha vida.

Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
O que mais me entusiasmou foi a capacidade de resolver um problema ao doente de forma prática. E de ter possibilidade de curar verdadeiramente o doente. Não sei se têm noção, mas há muitas poucas ofertas terapêuticas que têm capacidade de curar. A maioria alivia ou evita a progressão das doenças. A cirurgia pode curar. E depois sabia que não queria uma área que se dedicasse apenas a um órgão ou sistema, mas que tivesse uma grande área de atuação (bloco, enfermaria, urgência) com rotinas diferentes e com possibilidade de fazer diferentes cirurgias, em diferentes áreas do corpo humano. Além disse, sempre gostei da área de trauma, cuja Cirurgia Geral é o grande pilar de abordagem ao politraumatizado.

Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
O local mais frequente é o Bloco Operatório. Contudo, durante o internato passamos muito tempo também na Enfermaria. Apesar de para os internos de cirurgia ser “menos agradável” é na enfermaria que podemos observar a recuperação dos nossos doentes e equilibrar medicamente os doentes (sim, distúrbios hidroeletrolíticos, nutrição, infeções respiratórias e urinárias). O cirurgião geral também tem que ser internista.

Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
Do que diz respeito ao meu internato, ainda não tive possibilidade de sair do CHUC. No meu ano comum, durante o estágio de Cirurgia, como foi feito num hospital distrital, com uma equipa mais pequena, o ambiente era diferente.
Atualmente, o Serviço de Cirurgia Geral do CHUC está dividido em sectores e é um serviço com um corpo clínico enorme. Daí a parte de a relação interpessoal estar mais dissolvida. Contudo, são os internos mais velhos que acabam por ajudar mais os internos mais novos. Na minha experiência foi com os internos mais velhos que aprendi os gestos básicos. Posteriormente, ao longo do internado, vai-se sentindo a ajuda dos especialistas.

Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Dado o campo de atuação da Cirurgia ser enorme, e dada a patologia que abordamos ter uma prevalência grande, penso que a maioria dos hospitais tem capacidade para idoneidade. Os que não têm oferecem possibilidade de colmatar essa falha ao realizar estágios em hospitais centrais. O ensino depende muito do tipo de hospital (distrital vs. central) e das áreas que esse hospital dispõe. No CHUC, por exemplo, não fazemos cirurgia da mama (é a Ginecologia) e raramente cirurgia de patologia venosa ou arterial periférica. Também não temos unidade de Pé Diabético (está ao cargo da Ortopedia e Cir Vascular). Noutros hospitais, sem essas especialidades, acaba por ser a Cirurgia Geral a orientar esses doentes.

Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Sim. Durante o internato somos incentivados a realizar estágio no estrangeiro. Podemos ter uma área de gosto, mas tem que ser discutido com o orientador de formação e o Diretor de Serviço.

Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Para ser Cirurgião Geral é necessária dedicação. E é necessário saber que alguns dos objetivos de vida pessoal vão passar para segundo plano. O trabalho começa, durante o internato, por orientar a Enfermaria, passar visita, observar e examinar os doentes e alterar as tabelas terapêuticas. Depois temos o bloco operatório central ou periférico (cirurgias mais pequenas sob anestesia local). Em alguns dias não há tempo para almoçar. Temos uma tarde por semana para consulta externa. Geralmente depois do bloco voltamos à enfermaria para terminar as altas que não foram dadas de manhã e para ver os resultados dos exames complementares. Fazemos 12 a 48h de urgência por semana, em turnos de 12h ou 24h, com descanso compensatório no dia seguinte caso seja feita noite ou 24h.

Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Sim, é possível. O segredo está em saber gerir o tempo que temos e saber quando precisamos de trabalhar e quando temos tempo para “o resto”. Durante o meu internato continuei a fazer os meus hobbies, embora de forma menos frequente.

Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
A carga horária é enorme. Há semanas (raras) em que passamos as 80 horas. Fazemos muitas horas extraordinárias de urgência. Temos trabalhos para fazer, bases de dados para completar e artigos para escrever. Isto é transversal em todos os hospitais, em todas as especialidades. Há locais com mais ou menos necessidade de “trabalho extra”. Ao longo do internato aumenta a responsabilidade. As horas de urgência “extra” acabam por ser similares em todos os anos.

Como interno, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
É um fator que se sente ao longo do internato. No final do primeiro ano deveremos ser capazes de colocar acessos venosos centrais ou drenos torácicos sem supervisão. E ainda de realizar pequenas cirurgias (sob anestesia local). Ao longo do internato vamos fazendo cada vez procedimentos mais complexos com ajuda de um cirurgião. Às vezes, em procedimentos mais simples (apendicectomias, abcessos perianais) os internos mais velhos ajudam os mais novos no bloco operatório, com um cirurgião a supervisionar.

Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
A vantagem da Cirurgia Geral é a diversidade de áreas nas que podemos diferenciar. Isso depende do tipo de Hospital. Quanto mais central, mais a tendência para subespecialização. A grande maioria dos doentes terá patologia do sistema digestivo; dentro desta, há subespecialidades em cirurgia esofago-gástrica, cirurgia bariátrica, cirurgia hepatobiliopancreática, cirurgia colorretal, transplantação hepática; há ainda cirurgia endócrina (tiróide, paratiróide, suprarrenal); cirurgia da mama; cirurgia de emergência e politraumatizado; e, em alguns hospitais periféricos, pequenos procedimentos de urologia, ginecologia, cirurgia maxilo-facial e cirurgia vascular. Há unidades ainda de Parede Abdominal Complexa e Pé Diabético. O processo dá-se ao longo do internato, depende das oportunidades. Contudo, ao acabarmos o internado, podemos apenas ter vaga num hospital numa determinada área… Portanto, depende muito da oferta de ano para ano.

Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
No CHUC há um exame anual (geralmente no primeiro trimestre) com júri constituído pelo Diretor e pelo Orientador de Formação. Nos últimos anos realiza-se uma história clínica. Nos outros anos apenas é discussão curricular com perguntas teóricas orais. O estudo deve ser feito ao longo do internato. Contudo, muitas vezes não há tempo para ler todas as guidelines e artigos que são precisos. Nas semanas antes do exame gerimos o tempo de forma a fazê-lo.

Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
O nível de dedicação e horas de sono em falta.

Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
Autonomia precoce, rotinas diárias diferentes, vários campos de atuação.

Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão de carreira – infelizmente, é como em qualquer outra especialidade e os concursos para isso são poucos.
Enveredar pela carreira investigacional – É possível fazer investigação, especialmente num Centro Hospitalar e Universitário, estando ligado à Faculdade respetiva.
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público – Felizmente também, dada a prevalência da patologia, penso haver sempre lugar para a cirurgia geral no sector privado.

Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Sim, sem dúvida. É a melhor especialidade das 50 e tais. Penso que depende de caso para caso, mas integrei-me bem no meu Serviço. O importante é trabalhar e dedicar-se. Há dias menos bons, como em qualquer trabalho. O importante é aprender com isso.

Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
Sinceramente, ambos. Há pessoas que não têm destreza para cirurgia. Ninguém nasce ensinado, e muitas das técnicas vão-se aperfeiçoando ao longo dos anos. É importante treinar, ler e estudar antes das intervenções. Não é preciso ter nenhum talento inato para operar, mas há que reconhecer limitações.

Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
A experiência do internato varia de hospital para hospital. O importante é perceber que querem mesmo ser Cirurgiões Gerais. Se for esse o caminho, tudo é mais fácil.

Texto redigido com a ajuda do Dr. João Simões, interno de Cirurgia Geral no CHUC

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