Porque Há Esperança

2020: o ano que esteve nas bocas do mundo e que o mundo viu passar; em que tudo mudou e nada mudou – graças a todos aqueles que arregaçaram as mangas e não tiveram mãos a medir. Começamos 2020 com a breve ilusão que andava por aí um vírus, uma coisa manhosa vinda da China, que não chegaria depressa até nós, Portugal, extremo ocidente da Europa. Não chegaria – mas chegou. Tão feroz que nem demos conta e, quando demos, fechamos portas e abraços ao mundo, que ficou à nossa espera. Mas a pandemia não são só maleitas: a poluição diminuiu; os oceanos tornaram-se num lugar melhor; a urbanização foi obrigada a ficar em standby para que a transmissão e a progressão da curva abrandassem. Respiramos fundo e abrimos mão de muita coisa que tínhamos como garantida e, bem ou mal, se estás a ler isto, é porque sobreviveste a esta loucura.
Mas 2020 não foi só sobre máscaras, medidas de higiene, segurança e número de casos. 2020 trouxe à tona um movimento que havia começado em 2013 e que, desta vez, veio com mais força - Black Lives Matter, depois da morte de George Floyd, do seu último suspiro - “I can´t breathe”. Muitos, depois dele, foram últimos suspiros em prol de um movimento contra o racismo, contra a desigualdade, contra a diferença (ou indiferença). Muitos perderam, mas creio que apesar disso, a Humanidade ganhou um bocadinho mais daquilo que nos liga, um bocadinho mais de si própria. Somos todos iguais, não há preto no branco, nem branco no preto, nenhum vive mais, nenhum vive menos, vivemos exatamente aquilo que for para nós e, lá dentro, o sangue que nos corre nas veias é todo igual.
Depois de tanto suspirarmos, vieram finalmente as eleições americanas– de mãos a apontar para o céu (mas sobre política e futebol passo facilmente a bola para canto) – e veio Joe, a prometer esperança.
E é sobre esperança que vos quero falar. Esperança na vacina; esperança na Amazónia verde e bonita, depois de toda a tragédia; esperança na América e na Humanidade; nos jogos olímpicos que passaram a perna para o ano que aí vem; na igualdade de direitos e deveres; nas mãos dadas – todos – sem julgamento, sem critica, sem máscaras - outra vez.
2020 foi um ano daqueles! Fez-me questionar se todos os pequenos pontos e vírgulas estavam no lugar certo. Fez-me procurar respostas para perguntas que nem sabia formular. Fez-me bem, mal, deu-me pontapés e empurrões, mas fez-me saltar. To the next level – é assim que lhe chamo, é lá que estou.
2020 foi um ano daqueles, no geral. Nenhum de nós o consegue negar! Daqui a 20, 30, 40, que importância terá, no panorama geral?
Sobre 2021: Uma nova passagem, num novo começo, numa nova contagem. A mesma pandemia, os mesmos problemas, mas com uma lufada de ar fresco, com baterias carregadas e corações abertos. Que sejamos tão fortes quanto fomos neste 2020: porque há esperança.
 
Francisca Pinho Rocha, 6º Ano

Clinical Teaching Abroad in Pandemic Times - Split, Croatia

In order to assess what measures have been taken by medical schools in different countries to deal with the pandemic, we interviewed Ivan Covic, a 4th year medical student at the University of Split, Croatia.
 
First of all, thank you for your willingness to speak with us. How did your university adapt when the coronavirus pandemic emerged?
My university did not take any significant actions until the state declared lockdown. Following that decision, they implemented a quick program of education that transferred "live" teaching into the online sphere. The start was, to borrow a word, bumpy. It was difficult for the professors, many of whom are in their late fifties (some older), to successfully shift to online teaching. In the first months of the pandemic (March 2020 - May 2020), the online lectures varied drastically in their quality. None of the students had any "on hands" live practical classes and that would have been a big problem, especially for med students, if the lockdown held longer.
After the lockdown ended, the University had more "free space" to organize classes. The next measures and rules mentioned here were brought by the Medical School in Split.
The faculty stance was to follow the global epidemiological guidelines and to preserve the live teaching process for as long as possible. We shifted to smaller groups for our practical teaching in hospitals. It was also implemented that we measure our body temperature every day to see if we are fit to enter the hospital. Masks were/are mandatory on campus and in closed spaces.  The classical lecture where all the students from one year would be present, were changed to lectures with 1/3 of the student year and so forth.
 
What are the challenges and opportunities for medical students during covid-19?
The biggest challenge I would say is getting the opportunity to learn practical skills. Our student medial status is not defined on a level where we could easily continue our learning process. The biggest obstacle is that certain professors/doctors who are in charge to teach us practical skills in a hospital setting can easily use the "COVID-19 precautions" card and deny us from our practices. That imposes a big problem because we have to rely on their good will.
I would also like to mention the problem of blaming students for things that were once normal behavior. We are called selfish or not serious enough if we try to continue with our lives as normally as possible (without endangering anyone).
The biggest opportunity, in my opinion, is seeing and experiencing firsthand the battle against COVID-19. We had the opportunity to visit a COVID ICU, to see the process of decontamination and to see how it is to work in such conditions.
 
What is the impact of covid-19 on your education?
The impact is significant, our learning opportunities in a hospital setting are hit hard and we cannot practice all of the skills we would have been able to if there wasn't a pandemic.
 
Do you have practical classes at the hospital? Is your faculty paying for protective material (masks, gloves, gowns)? How is the ratio student:tutor:patient?
Luckily, we still have our practical skills in the hospital, but as I already mentioned they have their limitations. The university provided masks to students for on campus activities and the faculty provided surgical masks for in hospital work (but not nearly enough). We just received our protective visors, which are being handed out as we speak. Regarding the student:tutor:patient ratio, as I mentioned above, it has been reduced, but so has been the number of hours spent practicing.
 
Do you have autonomy to make clinical decisions?
We have limited clinical autonomy and it usually involves some basic clinical skills (anamnesis, clinical check up...)
 
Thank you, once again, on behalf of the magazine for your availability and good luck for your journey!
 

Andreia Gi, 6º ano

Entrevista: Associação “The Pineapple Mind”

O rosto que abraça a entrevista é o de Diana Carvalho Pereira, de 24 anos, estudante da FMUC, que preside a Associação “The Pineapple Mind”, a qual pretende erradicar o estigma da saúde mental pela via da sensibilização ativa da população para este flagelo.
 
Enceto a entrevista, agradecendo em nome da revista a tua disponibilidade. Assim, quais as razões que te impulsionaram a criar a Associação que coordenas e qual a história por detrás do nome?
Eu é que agradeço o convite. Em 2017, tive uma depressão tão limitadora que cheguei a congelar a matrícula na faculdade, quando já estava no 4º ano. Deixei de ter prazer em tudo o que fazia, inclusivamente frequentar as aulas. A dada altura, o meu estado psicológico alterado fez-me pôr em causa a escolha do curso e decidi congelar a matrícula. Na altura da recuperação, apercebi-me de uma grande lacuna no que diz respeito a conteúdos de psicoeducação escritos em português, páginas online com testemunhos e dicas de recuperação de doenças do foro mental, tão comuns noutros países. Ao mesmo tempo, tentei psicoeducar-me, utilizando conteúdos estrangeiros.
Quando voltei ao curso e tive a cadeira de neurociências e saúde mental, juntei os ensinamentos práticos que fui adquirindo como doente aos teóricos que a cadeira me deu e decidi que podia criar um projeto online onde pudesse de alguma forma combater a tal lacuna de informação que existia em Portugal.
Entre a medicação que fiz, estava o triptofano. Este está presente em alguns alimentos, sendo que um dos frutos mais ricos nele é o ananás. Assim sendo, depois de me sentir recuperada, decidi tatuar um ananás, para me lembrar de tudo o que posso fazer para promover o meu bem-estar. Quando criei o projeto, fez sentido para mim dar-lhe o nome “mente do ananás”, uma mente sã.
 
Lançaste recentemente um eBook intitulado “A mente também dói, mas pode doer menos!”, com a contribuição de outros elementos da TPM. Sucintamente, de que trata?
O eBook contempla práticas promotoras da saúde mental, com tudo o que funcionou comigo e poderá também funcionar com quem o ler. Ou seja, não serve para tratar nada, mas sim para prevenir doenças. Não existem fórmulas mágicas universais, no que diz respeito a terapias não farmacológicas e alternativas. Cada pessoa deve experimentar várias opções e ver o que faz sentido consigo.
 
A associação da qual és fundadora leva a cabo uma petição pela contratação de mais psicólogos nos Cuidados de Saúde Primários. Quais as vossas motivações?
Luís, um estudo coordenado pela Organização Mundial de Saúde e publicado na revista “The Lancet Psychiatry” em 2016 concluiu que por cada euro gasto em saúde mental, existe um retorno de quatro euros. Urge entender que a psicologia em Portugal ainda é um luxo, uma vez que só quem tem dinheiro para pagar consultas no privado tem acesso garantido a esse serviço. Quem não tem, sujeita-se a listas de espera intermináveis no serviço público. Em 2019, existiam apenas 213 psicólogos a trabalhar nos centros de saúde. Existem mais do dobro de centros de saúde em Portugal, ou seja, não há profissionais da psicologia disponíveis em todos eles. Se esses 213 psicólogos fizerem quarenta horas semanais, cobrem pouco mais de 34 mil portugueses. E os outros? Um em cada cinco portugueses sofre de uma doença do foro mental.
Se não há falta de psicólogos formados em universidades portuguesas (há 24 mil inscritos na Ordem), há que investir na sua integração nos quadros de saúde do sistema público. É isso que ambicionamos e pretendemos com esta petição e futura iniciativa legislativa. Assim sendo, apelo a todos os estudantes para assinarem a petição, não só pelos nossos doentes, como também por todos nós, que não somos livres de um dia desenvolver uma patologia do foro mental.
 
Consideras relevante a “psicoeducação” desde os tenros anos de idade, pelos pais ou escolas?
A segunda causa de morte nos jovens é o suicídio. As estatísticas são preocupantes e a maioria das pessoas desenvolve patologias do foro mental no início da vida adulta, por dificuldades de adaptação e lacunas no desenvolvimento. É necessário psicoeducar devidamente as crianças e jovens para que não desenvolvam patologias evitáveis, fazendo-o também nas escolas, onde se fala muito do corpo humano mas pouco da mente. É necessário falar abertamente sobre emoções, sentimentos e preocupações.
 
Tendo em conta a alta incidência de burnout nos estudantes universitário, consideras que se desvaloriza esta temática ou que pecam as medidas tomadas para o seu combate?
Considero que existem universidades preocupadas com esta temática, outras nem por isso. Em Coimbra, por exemplo, sinto que muito pouco se faz. Os SASUC têm consultas de psicologia com uma lista de espera complexa. Quando congelei a matrícula, ninguém me ligou a perguntar o porquê e se precisava de apoio. Para além disso, quando os estudantes revelam absentismo ou falta de aproveitamento, ninguém indaga sobre motivos.
A Universidade do Minho, por exemplo, tem um gabinete só dedicado ao burnout. Medem os índices nos estudantes, têm campanhas de sensibilização e respostas adequadas. Acho que todas deveriam ter estas respostas. Inclusive consultas acessíveis, dado que passamos grande parte do nosso tempo nas faculdades.
 
No que concerne ao raciocínio clínico que nos leva a um diagnóstico, consideras que o recurso a Exames Complementares de Diagnóstico na Psiquiatria poderia ajudar?
Não gosto de rotular doentes com diagnósticos, gosto de estudá-los e perceber como podemos ajudar, orientados para o seu problema em específico. Nos Estados Unidos e países nórdicos, os estudos dinâmicos (que juntam o estudo da anatomia e da função, como PET/CT) já são usados há anos, na Psiquiatria. Cá em Portugal, não há dinheiro nem vontade.
 
Já relativo ao tratamento, cinge-se frequentemente à parte farmacológica, não estando nem a terapia comportamental nem a psicoterapia contempladas na terapêutica. O que pensas em relação a isto?
Na maioria dos casos estão recomendadas, só não são usadas por falta de recursos humanos no serviço público. Existem inúmeros estudos que comprovam a eficácia da terapia cognitivo-comportamental e outras psicoterapias, em alguns casos igual ou superior a psicofármacos.
 
Tendo o contexto pandémico atual incrementado os quadros de patologia psiquiátrica, acreditas que a gestão desta pandemia severa de saúde mental foi bem conduzida? E que medidas deveriam ser tomadas?
Existiram boas medidas, como a inclusão de psicólogos na linha SNS24. Mas ao mesmo tempo, é um apoio pontual, não de continuidade. E o que a maioria dos doentes precisam é de continuidade e consistência. Não adianta ter consulta no centro de saúde de dois em dois meses. É mesmo urgente contratar psicólogos e também mais psiquiatras. Quanto aos primeiros, as recomendações europeias pedem 1 por cada 5 mil habitantes. Em Portugal deveríamos ter cerca de 2000. Temos, como já referi, pouco mais de 1/10, nos Centros de Saúde. Para além disso, tem que haver um reforço das equipas comunitárias e ainda um investimento nos cuidados continuados e hospitalares.
 
Urge-me perguntar-te, como aprendeste a encontrar tempo para dar azo à “The Pineapple Mind”, enquanto tens de dar conta das obrigações inerentes ao curso? 
“Quem corre por gosto não cansa”, dizem. Tento todos os domingos organizar a minha semana, tendo em vista conciliar as aulas, estudo e tese, com o trabalho associativo e gestão de diversos projetos. Ao mesmo tempo, nunca fui de exigir exageradamente de mim, no que diz respeito a resultados. Prefiro estudar para saber a longo prazo do que estudar para mostrar a curto prazo, como costumo dizer. E por isso mesmo, ponho o meu bem-estar e qualidade de vida à frente do resto. E acho que estarmos bem psicologicamente e felizes é o primeiro passo para tudo o resto correr bem.
 
Conta-nos acerca das experiências mais mediáticas que já tiveste ao longo deste teu percurso como presidente da “The Pineapple Mind”.
No início do ano, antes da pandemia, fui duas vezes a programas de televisão da TVI e fui ainda entrevistada para o Podcast Maluco Beleza, do Rui Unas. Depois do confinamento, dei entrevistas à imprensa escrita por causa do nosso projeto de voluntariado em regime de peer support, pioneiro em Portugal. Por ocasião do dia Mundial Da Prevenção do Suicídio, dei uma entrevista à rádio Megahits sobre as nossas atividades de sensibilização em várias cidades. Entretanto no mês passado voltei a participar num programa de televisão no Porto Canal.
 
No sentido de fazer mais do que nunca frente ao nocivo confinamento das mentes em corpos confinados por imposição, quais os conselhos que deixas aos nossos leitores para cuidar da sua saúde mental?   
Os conselhos passam por não se privarem do que vos faz feliz, com os devidos cuidados. Assim, passeiem, ouçam boa música, aproveitem os momentos em família e tentem manter contacto com os amigos, mesmo que seja só virtualmente. E tentem desligar, nas horas de descanso, das notícias sensacionalistas. Se têm dificuldade em relaxar, experimentem praticar mindfulness ou técnicas de respiração. Fazer exercício é sempre positivo, pela conhecida e famosa libertação de endorfinas, que nos causam bem-estar. Manter a higiene de sono e hábitos de alimentação saudável, é igualmente importante para nos sentirmos bem.
 
Em jeito de conclusão, o que ambicionas futuramente para a Associação?
Costumo dizer que o meu grande objetivo é que a Associação um dia não tenha que existir, se todos estivessem sensibilizados para a importância da saúde mental e deixassem de contribuir para o estigma. Não sei se será possível, mas não custa idealizar. No entretanto, pretendo que a Associação cresça e continue a intervir não só na psicoeducação em rede da nossa comunidade, como também social e politicamente.
Já temos 3 psicólogas do projeto na comunidade, uma importante ajuda para dar consultas a preço social em nosso nome e em breve vamos oficializar contratos de estágio profissional com duas psicólogas juniores, que também darão consultas. Para além disso, já celebramos quatro parcerias com clínicas de psicologia que fornecem consultas mais baratas para os nossos sócios. Em termos políticos, para além da petição, vamos continuar a intervir sempre que considerarmos pertinente e necessário, sendo que já temos nova agenda política para 2021, com várias ações.
No próximo ano vamos ter ainda alguns lançamentos (mais eBooks e outras surpresas) e ainda novos projetos. Somos neste momento 34 nos órgãos sociais, mais de 80 voluntários e 30 colaboradores. Uma comunidade que começou com o meu projeto e que atualmente psicoeduca em rede, chegando a milhares de pessoas através das nossas redes sociais, site e atividades. É para mim um orgulho continuar à frente do projeto que virou Associação e a cada feedback de agradecimento e apoio fico mais motivada para continuar a fazer mais e melhor pela Saúde Mental em Portugal.
O associativismo e a gestão de projetos tornaram-se paixões e quero conciliá-los com a prática clínica, futuramente. A minha tese de mestrado também é na área da Psiquiatria e, futuramente, é nesta especialidade que me vejo a trabalhar, ainda que esteja dependente de uma PNA. Gostava também de fazer investigação, produção científica e quiçá um Doutoramento nesta área que me apaixona.
 

Entrevista conduzida por Luís Bernardo Fernandes, 4º ano

1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #14 – MGF

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
Ser Médico de Medicina Geral e Familiar (MGF) significa fazer o acompanhamento dos utentes desde o seu nascimento até à sua morte. Significa fazer uma Medicina personalizada, global, acessível e de cuidados de continuidade a toda a população. A MGF cuida da pessoa em vários momentos: na prevenção, no diagnóstico, no tratamento, na reabilitação e nos cuidados paliativos. Esta diversidade proporciona desafios para os quais temos de estar preparados todos os dias.
 
Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Nos anos clínicos da faculdade, percebi que tinha preferência por uma especialidade médica, sendo que até ao final do curso e após contacto com a maioria das especialidades, o leque ficou reduzido a 4 ou 5 especialidades, entre as quais se encontrava MGF. O estágio do 6º ano em cuidados de saúde primários acentuou ainda mais o interesse que tinha pela especialidade.
 
Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
O facto de ser uma especialidade clínica, transversal a todas as idades e que obriga a um grande raciocínio clínico no quotidiano, são factores que pesaram na minha escolha. Para além disto, o facto de podermos proporcionar cuidados personalizados a quem mais necessita, é também uma fonte de motivação.
 
Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
O trabalho diário acontece maioritariamente na unidade de saúde (UCSP / USF) de colocação do Médico Interno, sendo que as formações obrigatórias e opcionais ocorrem, maioritariamente, no hospital de referência da instituição de colocação.
 
Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/ enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
A MGF trabalha sempre em equipa, quer sejam médicos ou não e isso é essencial para uma excelente prestação de cuidados. O ambiente entre os diversos profissionais depende sempre do local de formação do médico interno e da experiência pessoal de cada um, motivo pelo qual a escolha do local de formação é muito importante em MGF. Na minha experiência pessoal, o ambiente entre os vários profissionais e a entreajuda são muito boas.
 
Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Sim, as idoneidades formativas parecem-me adequadas nas unidades de colocação, sendo que esta idoneidade pode, por vezes, ser limitada pela capacidade formativa dos serviços hospitalares onde decorrem as formações obrigatórias e opcionais. A qualidade do ensino depende sempre da experiência pessoal de cada um nos seus locais de formação, mas na minha experiência pessoal, considero que é boa.
 
Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
A autorização da realização de formações no estrangeiro está sempre dependente de autorização superior, mas conheço colegas que realizaram estágios no estrangeiro (por exemplo, estágio de um mês em cuidados de saúde primários em Cabo Verde).
 
Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
O horário de trabalho costuma ser sobreponível ao do orientador de formação, sendo que também existe tempo disponível no horário para estudo e realização de trabalhos. A maioria é composta por atividade assistencial presencial (consultas), mas também realizamos atividade não presencial (contactos indiretos de utentes como, por exemplo, para renovação de medicação crónica). Todos os internatos têm o seu grau de exigência, que penso não diferir muito entre as especialidades.
 
Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Sim, existindo uma boa organização pessoal do tempo, existe possibilidade de ter hobbies e uma via pessoal/familiar ativa.
 
Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
A carga horária é adequada ao trabalho que realizamos, sendo que por vezes pode existir a necessidade de realizar algumas horas extra (em situações pontuais como substituição de colegas ou a realização de atendimento complementar à noite e/ou fim de semana). Esta realização de horas extra habitualmente aumenta com a progressão no internato.
 
Como interno, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Esta questão depende muito do orientador de formação. Pessoalmente, no início do internato acompanhei sempre a minha orientadora de formação na realização de consultas e a autonomia foi sendo ganha progressivamente, com o decorrer do internato.
 
Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
Em MGF não existem subespecialidades, embora exista a possibilidade de realizarmos formação pós-graduada específica em determinada área que seja do nosso interesse. Já começam a existir algumas consultas específicas (atividade física, cessação tabágica...) em algumas unidades às quais os médicos se podem dedicar.
 
Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
Habitualmente, as formações complementares obrigatórias têm uma avaliação escrita (por Administração Regional de Saúde), que decorre entre o final do ano e o início do ano seguinte. As avaliações de cada ano de internato consistem numa avaliação escrita realizada a nível nacional (no final do 1º e 3º ano do internato, em 2 épocas diferentes – janeiro e junho) ou, então, pode ser feita avaliação oral (no final do 2º e 4º ano do internato, realizada a nível de cada ACeS / ULS no início de cada ano). O exame final do internato ocorre, habitualmente, em 2 épocas, tal como em outras especialidades, nos meses de março e outubro. É necessária bastante dedicação e estudo para realizar as provas referidas. A maior dificuldade neste momento é que estas metodologias de avaliação são recentes e, por exemplo, a prova escrita de avaliação do 1º ano foi realizada pela primeira vez em janeiro de 2020 e não existiu bibliografia recomendada para o estudo.
 
Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
Existe bastante trabalho burocrático (por exemplo: renovação de prescrição de tratamentos de Medicina Física e Reabilitação, relatórios para a Segurança Social) que não deveria ser função do Médico de Família e que retira tempo para outras atividades.
 
Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
A relação médico-doente que conseguimos construir com os utentes e o facto de lidarmos com eles ao longo de todo o seu ciclo de vida, são aspetos que fazem a MGF diferenciar-se em relação às outras especialidades. Fazer consulta a um recém-nascido e na consulta seguinte estarmos a acompanhar um doente diabético ou uma grávida é um desafio que considero ser um fator positivo e desafiante nesta especialidade.
 
Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão de carreira – A progressão na carreira é igual em todas as especialidades. No entanto, MGF tem a particularidade de ter uma organização diferente das demais especialidades - a existência de USF modelo B, onde existem incentivos financeiros estabelecidos. Nesta tipologia (USF modelo B), existem também incentivos financeiros para os coordenadores das unidades e para os médicos que são orientadores de formação.
Enveredar pela carreira investigacional – Quem gosta da área de investigação tem a possibilidade de enveredar por ela de duas formas: através da realização do doutoramento ou integrando grupos de investigação.
Constante inovação científica – As reuniões de cada unidade funcional, as reuniões mensais de cada internato e os congressos científicos (entre outros) em que participamos, são oportunidades de formação contínua que permitem a atualização de todos os profissionais.
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público – É do conhecimento público que existe carência de Médicos de Família em algumas regiões do País e têm aberto sempre vagas em número suficiente para os especialistas que terminam o internato em todas as épocas de exame. Em relação ao setor privado, também continuam a existir algumas ofertas de emprego.
 
Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Sem dúvida alguma, pois está a corresponder às minhas expectativas.
 
Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
Sendo MGF uma especialidade médica, penso que o estudo e a dedicação são fundamentais.
 
Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Não.

Texto redigido com a ajuda do Dr. Hugo Almeida, médico de Medicina Geral e Familiar

LGP : ESSENCIAL OU OPCIONAL?

Boa tarde! Antes de mais, obrigado pela vossa disponibilidade em conversar connosco. Começando, talvez, pelo que está mais diretamente relacionado com a minha futura profissão e dos meus colegas, acha que os cuidados de saúde primários e secundários estão suficientemente preparados para atender uma pessoa surda?
André – Não. Acontece existirem pessoas com maior sensibilidade e que fazem um esforço para nos atender da melhor forma possível. Mas, chegarmos e termos alguém que domine a língua ou que nos forneça um intérprete, não acontece. Vão existindo alguns acordos e, por exemplo, o IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) tem serviço de interpretação, com marcação prévia. Agora com o COVID-19, o SNS tem atendimento também em LGP, mas há tanta coisa que ainda falta!
 
Como procedem as pessoas surdas para ir a uma consulta médica?
André – Depende… a pessoa surda pode contratar um intérprete para ser a ponte de comunicação entre o utente e o médico, tendo de pagar do seu próprio bolso e, naturalmente, nem todos têm esta possibilidade.
Quem tem familiares que sejam fluentes em LGP, poderá sempre procurar ajuda neles, mas aí levanta-se a questão da privacidade. No meu caso, tenho a Marisa (esposa), em que a questão da privacidade não se coloca… Há também situações em que os surdos não têm simplesmente possibilidade de contratar um intérprete o que, aliado a não terem ninguém que os possa auxiliar... faz com que acabem por ir sozinhos e, por norma, é uma aventura!
 
Todos os surdos falam língua gestual? E quanto à leitura labial e escrita de português?
André – Na grande maioria sim, falam Língua Gestual Portuguesa. Os que não falam, poderá ser porque têm uma surdez mais ligeira, conseguindo oralizar e também preferindo que assim seja. Noutras situações, não falam por estarem isolados e nunca terem tido oportunidade de contactar com outros surdos, não conseguindo, assim, desenvolver a sua língua gestual. Esta situação já não acontece tanto atualmente, mas ainda é uma realidade.
Todavia, a grande maioria privilegia o uso da LGP. A leitura dos lábios é muito relativa, há quem se sinta capaz e confortável para o fazer e há outras pessoas que não. Mas, na minha opinião, isso não pode ser a solução. Por vezes, a leitura labial é vista quase como uma obrigatoriedade para todos os surdos. E há quem não seja capaz de o fazer…
Relativamente à escrita, é difícil de responder. Há surdos que escrevem muito bem, mas a maioria não. Isto acontece porque a gramática da Língua Gestual é diferente da do Português.
 
Como funciona o Ensino Básico e Secundário para as pessoas surdas?
André – Existem escolas de referência para onde os alunos surdos costumam ir e, aí sim, o método de ensino é adaptado à sua realidade. Isto não acontece quando os pais não querem, frequentando antes uma escola comum, sem receberem qualquer tipo de apoio.
 
Do que conhece, como lidam os pais com a surdez do filho/a?
André – Depende de muitos fatores! Acredito que, inicialmente, seja um choque, principalmente quando é uma realidade desconhecida para os pais. E acho que o mais difícil será digerir esse choque. Vemos pais que vão à procura de um milagre, falar com os médicos, procurar operações ou procedimentos milagrosos... Em jeito de brincadeira, há país em que só lhes falta colocar um aparelho auditivo em cada dedo dos filhos, para que eles oiçam!
No meio de tudo isto, o mais importante é que exista uma base de apoio muito grande e, acima de tudo, os pais tenham a capacidade de entender que o melhor para o seu filho poderá não passar por aquilo que idealizaram, ou até mesmo que a nossa sociedade ache correto ou aceitável. A nossa sociedade vive de modelos e há muitas pessoas que acham que todos temos de encaixar nesses modelos. Isso não é real!
 
Considera que ainda há muitos pais que não aceitam que o filho/a seja surdo?
André – Eu não diria que não aceitam…mais cedo ou mais tarde, acabam por aceitar. Há exceções, claro, e essas são preocupantes. Nesses casos, temos crianças que crescem à margem daquilo que os pais querem e exigem, acabando por não serem crianças efetivamente felizes.
Acho que o grande problema se prende na capacidade que os pais têm em adaptar/dar os estímulos certos à criança. Por vezes, esta incapacidade resulta de puro desconhecimento, sendo este o grande problema da nossa sociedade. Noutras situações, a falta de conhecimento advém de opiniões que não são as mais corretas ou adequadas para o processo de aprendizagem e desenvolvimento de uma criança surda.
 
Sente que existe discriminação? Ou, pelo contrário, que os surdos estão consideravelmente mais incluídos na sociedade?
André – Eu acho que, atualmente, a discriminação não é tão visível, havendo situações pontuais em que ela ocorre… claro que sim. Algumas delas, acontecem muito por desconhecimento e falta de informação. É aqui que está o grande problema. Não há interesse em se procurar esta informação, em corrigir as situações quando acontecem e isso sim, faz com que tudo volte a acontecer novamente. Há situações mais desagradáveis que outras, mas muitos vezes é uma questão de respeito e aceitação pela diferença.
 
Relativamente às oportunidades de acesso ao Ensino Superior e mercado de trabalho, considera que são muito díspares entre pessoas surdas e ouvintes?
André – Sim, são muito díspares! Um surdo pode se candidatar, efetivamente, a um curso superior qualquer. Todavia, quando lá chega, a instituição não está preparada para o receber… começando logo pelo facto de não ter um intérprete de LGP que assegure a comunicação nas aulas. Isto acaba por inibir os surdos de ingressar em cursos que realmente gostem. O que se verifica é que têm, em primeiro lugar, em conta onde poderão ter um intérprete que assegure a comunicação.
 
É da opinião que a LGP deveria ser de ensino obrigatório nas escolas? Ou pelo menos uma opcional?
André – Sem dúvida alguma! Em primeiro lugar, porque é mais fácil captarmos e aprendermos uma língua quando somos mais pequenos, permitindo-nos ao longo da vida e percurso explorar e praticar essa língua. Em segundo lugar, porque as crianças não olham para a diferença como algo negativo. Eu sou apenas mais uma pessoa para uma criança, só que falo uma língua diferente. Já os adultos, é raro olharem para nós com essa simplicidade.
 
Acha que os ouvintes têm receio em interagir com as pessoas surdas? E o oposto, acontece?
André – Eu acho que os ouvintes têm muito mais medo de interagir connosco que o oposto. Isto porque, em primeiro lugar, nós temos a necessidade diária de interagir com eles, pois precisamos de ir ao pão, ao banco, etc. Muitas vezes, temos de nos “safar”. Em segundo lugar, somos vistos como uma minoria e, por isso, há ouvintes que acreditam que o esforço tem de partir de nós, fazendo automaticamente com que tenhamos de ser nós a ir à luta, começar a interação e tentar quebrar o gelo.
 
Considera que há igualdade no acesso à informação?
André – Não! Seja nas notícias, programas, informação escrita ou filmes em Português sem legendas… não há igualdade. Há pouquíssima coisa acessível que seja compreensível pela comunidade surda.
 
Quantos surdos existem em Portugal?
André – Os últimos censos falam em cerca de 170 mil. Não sei se esta informação está atualizada, mas no próximo ano teremos novos censos.
 
Um surdo pode conduzir?
André – Claro que sim! Aliás, apercebo-me mais rapidamente de um obstáculo ou da aproximação de uma ambulância do que a Marisa, por exemplo.
Não existe nada a dizer que não possamos conduzir. Tenho todas as minhas capacidades em funcionamento pleno. Simplesmente utilizo uma língua diferente para comunicar no meu próprio país.
 
Que línguas gestuais existem, para além da portuguesa?
André – A LGP não é universal, aliás, como o próprio nome indica, é Língua Gestual Portuguesa. Cada país tem, assim como a língua oral, a sua Língua Gestual. Por exemplo, em França temos a Língua Gestual Francesa, em Espanha a Língua Gestual Espanhola e assim sucessivamente…
 
Gostariam de contar alguma experiência menos boa que tenha acontecido, por exemplo, numa simples ida às compras ou ao café?
André e Marisa – Temos várias... Já aconteceu ouvirmos que parecíamos uns macacos a falar assim com as mãos. Ou que era uma pena o André ser surdo porque até é bonito! Já insinuaram não entenderem o que é que eu vi nele, para me casar com ele… Isto com pessoas que nada têm a ver com a nossa vida, achando simplesmente que têm o direito de opinar.
 
Consideram que uma pessoa surda tenha maior tendência para a deterioração da sua saúde mental?
André – Não! Podem existir situações pontuais, mas não me parece que a causa seja a surdez.
 
Poderia descrever um dia típico, na vida de uma pessoa surda?
André – É uma rotina como a de uma pessoa ouvinte, simplesmente temos algumas adaptações. Por exemplo, acordamos com um despertador que vibra. No meu caso em particular, não ligo a televisão para ver as notícias, costumo vê-las nas redes sociais ou online. Temos um quotidiano normal, como o de qualquer outra pessoa. Existem alguns desafios no nosso dia a dia mas, no que diz respeito à rotina, não acho que seja muito diferente.
 
Professora, pode-nos falar um pouco sobre a relação que tem com o seu marido? Como se conheceram?
Marisa – Bem, a minha relação com o André é como qualquer outra, entre um casal! O amor é o que prevalece e, acima de tudo, está a confiança. Confiamos muito um no outro, tal é essencial em qualquer casal, mas no nosso caso acho que a surdez “agrava” essa necessidade. Talvez algumas situações exijam de mim um pouco mais de atenção, pois sou o apoio dele não só enquanto esposa, mas também porque faço a comunicação em vários contextos, inclusive com a família.
Somos um casal como qualquer outro, contudo, não conseguimos fazer um jantar romântico à luz das velas, pois precisamos de um ambiente com muita luz para comunicar! Também não conseguimos andar de mãos dadas, uma vez que precisamos delas para comunicar.
 
Como tem sido o feedback dos alunos de medicina aos quais dá aulas?
Marisa – De uma forma geral, muito positivo, e a grande maioria vê a participação no curso como uma mais valia, por norma mantendo essa opinião mesmo findo o curso. Há até sempre muito interesse em continuarem a aprender, fazendo o nível II…
Muito do feedback que recebo deste curso é relativamente a servir para abrir horizontes. Mais do que aprender a língua, os alunos têm a oportunidade de conhecer uma comunidade diferente, cujas especificidades é muito importante conhecer. Temos uma ou outra situação em que percebo claramente que os alunos não se encaixam, ou então que não compreendem as necessidades da pessoas surda e acham que esta é até inferior e que ela é que se deve esforçar. Mas… em 7 anos de colaboração com o NEM estes casos foram muito, muito poucos.
Uma outra situação que me deixa muito contente, é os alunos reconhecerem que deveria existir uma cadeira, no próprio curso de Medicina, de LGP, nem que fosse opcional. Assim permitiria e obrigaria todos os médicos a conhecerem esta realidade.
Esta iniciativa deixa-me muito contente mesmo, aliás, deixa-me orgulhosa! Acredito que o meu trabalho vos contagie e que a semente fique em vós… o exemplo desta entrevista é isto mesmo. O vosso interesse vai além do curso e estão a incluir esta temática em outras atividades ou áreas.
 
Um agradecimento muito, muito especial à Professora Marisa Maganinho e André Taipina por, tão prontamente, aceitarem colaborar connosco, visando informar os futuros médicos e sensibilizar para a importância de aprender Língua Gestual Portuguesa.
 
A entrevista foi realizada em colaboração com o DSPRA, pelo colega Miguel Castanheira.

1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #13 – Urologia

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
A Urologia é uma especialidade médico-cirúrgica que estuda e trata as doenças do aparelho urinário e, por extensão, do aparelho sexual masculino. A Urologia é eclética: destaca-se pela sua grande versatilidade, pelo domínio de técnicas diagnósticas ímpares que vão desde a neurofisiologia à radiologia, da ecografia à endoscopia e, por vezes, existe fusão destas modalidades. Em termos cirúrgicos, a Urologia destaca-se por estar na vanguarda dos avanços técnicos. É, por excelência, a especialidade da robótica, da laparoscopia, das técnicas minimamente invasivas e por orifícios naturais. É, sem dúvida, uma especialidade que caminha de mão dada com a tecnologia.
No bloco operatório, o urologista deve dominar a cavidade abdominal, o retroperitoneu e a cavidade pélvica. Para isto, deve estar familiarizado com diferentes áreas cirúrgicas: vascular (pela proximidade aos grandes vasos abdominais e pela realização de transplantação renal); ginecológica e coloproctologia (pela partilha do espaço pélvico).
Omnipotência e “Deusificação”? Não, a maioria dos urologistas são pessoas terra-a-terra, simpáticas, com bom humor, que gostam de trabalhar em equipa e são felizes. É óbvio que estou a fazer uma generalização, mas pensem nas vezes em que conviveram com um urologista ou, caso não o tenham feito, prestem atenção da próxima vez que o fizerem. Existe base científica para estas afirmações – vários artigos comparam as personalidades de urologistas, cirurgiões e não cirurgiões.
As principais frentes de ação dependem do sítio e dos interesses de cada um. Existem variadíssimas áreas da Urologia, podendo haver tendência para a subespecialização: oncologia; litíase; urologia reconstrutiva; neurourologia; infertilidade; andrologia; transplantação e urologia pediátrica.
No exemplo prático de Coimbra e dos CHUC, as principais frentes de ação são a oncologia urológica e a transplantação renal. O serviço de Urologia do CHUC, para além de tratar cirurgicamente doentes oncológicos, tem a particularidade de assumir a oncologia médica de todos os seus doentes – sendo responsável pela realização de quimioterapia e imunoterapia.
 
Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Uma nota pessoal:
Escolher uma especialidade médica deve ter diversas fases e não deve ter início no internato geral, a um ou dois meses das escolhas. Deve começar bem mais cedo, para vos dar tempo para experimentar, vivenciar, escrever a vossa tese nessa área ou mesmo mudar de ideias para um rumo totalmente diferente. Ter um objetivo até vos vai dar mais força para estudar para a prova de acesso à especialidade...
Antes de querer uma especialidade em concreto, o primeiro conflito interno com que nos devemos deparar é: quero uma especialidade médica, cirúrgica ou comunitária? Em termos pessoais, a minha resposta chegou no 3º ano da Faculdade de Medicina, durante as aulas de Propedêutica Cirúrgica com o Professor Henrique. A possibilidade de um primeiro contacto com o doente cirúrgico, a semiologia abdominal, o bloco operatório e o serviço de urgência, foram determinantes na minha escolha. A partir deste momento na minha formação, tive a certeza que iria procurar passar muitas horas da minha vida num bloco operatório e com as mãos na cavidade abdominal e pélvica. Neste sentido, procurei passar mais tempo dentro de um bloco e nas especialidades cirúrgicas – este é o meu conselho para uma escolha mais ponderada e mais direcionada.
O interesse na Urologia surgiu mais tarde, nas aulas práticas da cadeira e no contacto com as atividades desenvolvidas por Urologistas. A facilidade com que éramos integrados, o bom ambiente que por ali imperava e a possibilidade de ajudar em alguns procedimentos, foram grandes marcas no meu interesse pela Urologia. Recordo um momento chave nesta escolha – numa das minhas idas à sala 1 do bloco central do CHUC, o Professor Arnaldo perguntou se já tínhamos visto uma nefrectomia parcial laparoscópica, no tempo cirúrgico de uma apendicectomia. Permanecemos céticos por 45 minutos, mas ao final deste tempo tínhamos ido de “pele e pele”, com o tumor cá fora e a sutura laparoscópica feita. Com esta memória, a partir daí fui juntando mais e mais razões.
 
Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
A escolha de Urologia, em particular no CHUC, foi muito simples. As duas principais áreas de atuação da Urologia do CHUC, são também as minhas áreas de interesse na Urologia. Por um lado, sempre sonhei em combater a patologia oncológica, acompanhar o doente oncológico através do seu diagnóstico, tratamento e prognóstico. Em particular, a oncologia do sistema urinário pela sua prevalência e morbimortalidade. A possibilidade de integrar um serviço de fim de linha no tratamento do cancro urológico, com uma visão holística e uma abordagem médica e cirúrgica, sempre ditou o meu entusiasmo por esta especialidade.
Em segundo lugar, a oportunidade de integrar o serviço de transplantação renal. A participação nas colheitas multi-órgão, as ajudas em transplantes de dador vivo e dador cadáver. A possibilidade de participar no legado deixado pelo Professor Linhares Furtado em Portugal.
Não menos importante, fiz esta escolha pela possibilidade de aprendizagem com grandes médicos e cirurgiões, num ambiente familiar e de trabalho em equipa. Mais ainda, fiz esta escolha pela possibilidade de aprender numa boa “escola” cirúrgica.
 
Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
Enfermaria: Seguimento dos doentes no pré e pós operatório; internamentos para realização de quimioterapia e internamentos por patologia urológica urgente;
Bloco operatório central;
Bloco operatório periférico: cistoscopia; biópsias prostáticas; colocação e troca de cateteres de nefrostomia; entre outros;

Urgência: abordagem à patologia urológica urgente;

Consulta externa;

Reunião de Serviço e Reuniões Multidisciplinares: imagiologia e radioterapia;

Hospital de Dia de Oncologia;

Litotrícia;

Exames Urodinâmicos;

Exames Urorradiológicos;

 
Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/ enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
Existe uma excelente relação entre médicos internos e especialistas. Impera o espírito de equipa e de entreajuda, com grande facilidade para discussão de casos clínicos e ajuda na melhor orientação dos doentes. Existe abertura na discussão de casos de oncologia em reuniões de decisão terapêutica, nas quais os internos participam ativamente.
No bloco operatório central e periférico, existe uma ótima relação entre médicos, enfermeiros e auxiliares, imperando a boa disposição e bom ambiente de trabalho.
 
Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Sim, existe idoneidade completa. Neste momento, só existe internato de Urologia em Hospitais Centrais, com o intuito de garantir uma formação semelhante a todos os internos do país. A qualidade do ensino em Portugal, especificamente na área da Urologia, é muito boa, acima da média europeia. Existem muitos países onde a formação cirúrgica é muito difícil, com dificuldade em atingir números mínimos de cirurgias.
Existem algumas valências nas quais os internos procuram estagiar fora, visando estar perto dos melhores em determinada área ou técnica.
Com o advento da robótica, um dos ponto fracos do CHUC é a inexistência de robôs.
 
Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Definida em decreto de lei, está a obrigatoriedade em realizar 1 ano de estágio em cirurgia geral e 2 meses em cirurgia pediátrica. Os restantes estágios são opcionais e dependentes dos interesses de cada interno - 4 meses que podem ser passados noutras especialidades médicas ou cirúrgicas. Estes podem, também, ser aproveitados para a realização de estágios fora do país, em centros de referência de determinadas áreas da Urologia.
 
Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Um dia de trabalho pode variar muito. Geralmente, começo o dia por volta das 7h50, vejo o meu setor da enfermaria e os doentes que operei. Às segundas, terças e quintas, existe reunião de casos clínicos/ decisão terapêutica às 8h15. Durante a manhã, podemos ter atividade programada no Bloco central, Bloco periférico ou na Unidade de Cirurgia de Ambulatório. Durante a tarde, continuamos o trabalho, podendo estar escalados em prolongamentos no bloco central, estudos urodinâmicos ou unidade de cirurgia de ambulatório. Os internos, geralmente, têm um período de consulta por semana e um ou mais tempos de urgência.
A Transplantação renal poderá acontecer em qualquer altura do dia ou da noite...
Ou seja, é difícil definir um dia tipo.
O nível de esforço e dedicação é elevado, mas a recompensa e felicidade são também igualmente elevadas.
 
Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Sim, com organização existe tempo para tudo. A grande maioria de nós pratica desporto e tem hobbies, fora do hospital. Existe tempo para a vida pessoal, familiar e social, mas por vezes existe menos tempo para dormir.
 
Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
Existe uma carga horária pesada, como em qualquer outra especialidade cirúrgica. Facilmente se excedem as 40h de trabalho semanal. Mas numa especialidade cirúrgica, há tendência para a correlação entre o número de horas de exposição e a prática.
Nos primeiros anos, realizamos urgência apenas durante o dia, sendo que a partir de metade do internato passamos a fazer noites.
Ao longo do internato, vamos recebendo mais tempos de consulta.
 
Como interno, como é o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Existe uma curva de aprendizagem a cumprir, com tempos diferentes consoante a dificuldade da técnica ou gesto clínico. Rapidamente se aprende a executar uma cistoscopia rígida ou flexível, ficando independente tecnicamente. Por outro lado, uma cirurgia mais complexa faz-se em equipa e, muitas vezes, não se é independente, mesmo como especialista. É uma aprendizagem contínua.
No geral, após os 6 anos de internato, os internos estão confortáveis e independentes para realizar a maioria/totalidade das técnicas, cirurgias e abordagens ao doente.
 
Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
Existem as subespecialidades já mencionadas. Todos os urologistas sabem executar a base de todas as áreas da Urologia, no entanto, existe cada vez mais tendência para a subespecialização. A escolha dependerá da vontade do próprio em investir numa área em específico, da existência dessa área no hospital em que trabalha ou, até mesmo da sua criação.
 
Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
Os momentos de avaliação são exames orais anuais, com defesa do curriculum cirúrgico, científico e pedagógico. As datas são definidas pelos internos, em conjunto com a direção do serviço. Geralmente, decorrem em Março de cada ano.
A Urologia é teoricamente exigente, envolvendo um domínio das componentes médica e cirúrgica. As guidelines europeias de Urologia e a sua atualização anual, mantêm-nos a par da evolução da ciência e técnica.
Todavia, considero que a avaliação não é só pontual. O melhor tratamento dos doentes põe-nos diariamente à prova, envolvendo um estudo contínuo de conteúdos teóricos, a par de um treino técnico exigente.
 
Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
É difícil definir a maior dificuldade. É sumamente impossível dominar, médica e cirurgicamente, todos os campos da Urologia. Desta dificuldade nasce a subespecialização.
 
Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?

Semiologia rica;

Grande variedade de técnicas cirúrgicas: cirurgia aberta, endoscópica, laparoscópica, robótica, percutânea;

Independência no diagnóstico: Endoscopia; radiologia; ecografia, urodinâmicos;

Cientificamente estimulante e com evolução constante;

Bons resultados, bons cirurgiões;

Bom ambiente, espírito de equipa;

Transplantação renal;

Oncologia.

 
Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
enveredar pela carreira investigacional;
constante inovação científica;

Existe possibilidade de aliar a carreira clínica à científica e investigacional. Existem alguns urologistas a realizar programadas de doutoramento e a participar ativamente em ensaios clínicos e outros projetos de investigação. Uma carreira puramente de investigação não me parece fazer sentido numa especialidade cirúrgica.

Existe uma constante inovação técnica e científica, tornando a Urologia altamente estimulante. 
 
Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Sem qualquer dúvida. A corresponder e a superar.
 
Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
É uma pergunta para responder com mais maturidade, dentro de 10 ou 20 anos. Quando estiver a olhar do lado do especialista, com experiência na formação dos mais novos. Pessoalmente, tendo a acreditar que o trabalho compensa. A cirurgia envolve treino, repetição e disciplina. Mas ao mesmo tempo, envolve rapidez na decisão sobre o imprevisto - aí entra o talento, a coragem e capacidade de lidar com a pressão.
É uma pergunta para o milhão de euros.
 
Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
O antigo provérbio “fazer das tripas coração”, é sinónimo de superar e vencer adversidades julgadas impossíveis. A Urologia ainda não faz o impossível, mas é a única especialidade que é capaz de transformar um órgão noutro diferente - fazer das tripas bexiga.
A escolha da especialidade é de extrema importância e, muitas vezes, será fundamentada pelas experiências pessoais e pessoas que as compõem. Desta forma, devem procurar investir, no vosso percurso académico, tempo nas especialidades que vos tiram o sono.

Texto redigido com a ajuda de Dr. Vasco Quaresma, médico interno de Formação Específica em Urologia no CHUC