O Rescaldo da Nova Prova

Segunda feira, 18 de novembro, pelas 19h, decorreu um movimento em massa dos estudantes de Medicina com repercussão a nível nacional – Porto, Coimbra e Lisboa – do qual constou a assinatura de uma carta com propostas de resolução dos problemas que os estudantes de medicina estão a atravessar, o que se vê repercutido numa própria inviabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Este movimento apoiou sobretudo os colegas que prestavam exame, e reivindicou direitos pelos próximos.
O objetivo das cartas passou por chegar ao Ministério da saúde e Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, pela mão da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), já que sendo registadas, existe a obrigatoriedade de resposta.
Em Coimbra, Trouxemil, houve a oportunidade de entrevistar a Vice-presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), Carolina Caminata; a presidente do Núcleo de Estudantes de Medicina da Associação Académica de Coimbra (NEM/AAC), Catarina Dourado; o Presidente do Núcleo de Estudantes de Medicina da Universidade da beira Interior, Francisco Capinha; e os Mestres em Medicina e prestadores de Prova Nacional de Acesso à Especialidade, Dra. Cátia Sólis e Dr. Pedro Silva.

Catarina Dourado, quais são as principais críticas tecidas pelos estudantes, que os moveu a realizar o movimento?
Existe um problema no panorama nacional que temos enfrentado nos últimos anos e que a ANEM tem debatido afincadamente. Os estudantes não sabem o número exato de médicos que exercem medicina, tanto a nível público como privado e setor social; não sabem as exatas necessidades médicas da população a nível de especialidades, ou distribuição por região. Neste sentido vem a proposta da ANEM, depois de várias petições apresentadas em Assembleia da República com soluções para este problema, mas que têm vindo a ser constantemente ignoradas. Assim, vimos neste esforço conjunto com os candidatos que realizam a prova e os estudantes que se deslocam às caves de Coimbra, para que cheguem aos referidos Ministérios e possa ser feita alguma coisa.
Acrescento que não temos uma avaliação das necessidades do País que adeque as necessidades formativas pós-graduadas em termos de especialização médica e distribuição geográfica pelas regiões mais deficitárias dessas mesmas especialidades, para que depois também possam ser adequadas ao número de vagas, ao numerus clausus no curso de Mestrado Integrado em Medicina, para que a longo prazo haja um planeamento integrado dos recursos em Saúde.

Francisco Capinha, quais as propostas que considera mais relevantemente mencionadas na carta para solucionar o problema identificado?
A carta propõe um observatório para o planeamento de recursos humanos em saúde, que vem em Diário da República, e o objetivo passa por ter uma estrutura que congregue não só a Tutela, mas também a Ordem dos Médicos, o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, o próprio Conselhos de Reitores da Universidade Portuguesa, servindo para aferir quais são as necessidades de recursos humanos em saúde em Portugal, e que permita estabelecer um planeamento estratégico do SNS a médio e longo prazo, e não só com medidas rápidas. É necessário que haja uma estrutura que consiga fazer o planeamento para sabermos onde temos de atuar, integrando e articulando aquilo que são necessidades do pós-graduados, profissionais de saúde efetivamente no ativo; e aquilo que são as necessidades de formação, isto é, no pré- graduado, quantos estudantes precisamos de formar e para que especialidades, o que  precisamos dos profissionais de saúde para termos um sistema eficiente e funcional.

Francisco, enquanto estudante da Universidade da beira Interior, hoje tiveste que te deslocar a Coimbra porque neste momento nem todas as cidades sede de escolas médicas têm possibilidade de realização de prova.
Sim, é o meu caso particular, que venho da Beira Interior, mas esta também é uma realidade da Universidade do Minho e da Universidade do Algarve, sendo que esta última nunca teve possibilidade de realização de prova e quer lutar para a ter, pois é uma grande limitação. No fundo os nossos estudantes estão dispersos pelo país, com custos acrescidos de deslocação e estadia, pontos muitos negativos que esperamos alterados num próximo ano. Questão que se pretende ver revertida para Braga e Covilhã, estendida para o Algarve.

Carolina Caminata, que resposta é espera da parte da Tutela?
A ANEM está a conversar com estes Ministérios há vários meses e nunca se passou da fase de conversação. Nunca se chegou à finalização e a uma proposta que realmente satisfizesse as necessidades do SNS de momento. O que esperamos é realmente a concretização da proposta para planeamento dos recursos de saúde em Portugal, no Diário da República, achamos ser uma necessidade grande deste momento.
Acrescento que a chave da resolução do problema também passa por juntar estes dois ministérios, que estão tão envolvidos na formação dos estudantes de Medicina em Portugal, que comecem a reunir para planear os recursos humanos em Portugal.

Interpelados os prestadores da Prova Nacional de Acesso à Especialidade, a nova prova correspondeu às expectativas criadas e deu reposta os flagelos identificados à anterior? O que achou da iniciativa do movimento das cartas?
Dra. Cátia Sólis: Em relação à Prova Piloto, o exame foi muito mais difícil e o tempo insuficiente para o seu término, havendo perguntas com a extensão de uma página ao integrarem análises laboratoriais e muito texto, muito também desnecessário e inútil para a resposta à questão. Em relação aprova anterior existe maior justiça, uma vez que pode ser questionada qualquer coisa, dada a amplitude da matriz e, portanto, não há forma das perguntas se repetirem constantemente. Há um maior apelo ao raciocínio clínico do que à memória.
Quanto ao movimento, gostei da ideia porque transpareceu o interesse e preocupação de todos para com o futuro. A Medicina está a “afundar” e quando entrámos no curso tal não se previa. O que parecia estável tornou-se uma incógnita. Há cada vez mais médicos não especializados e isso assusta. Sinceramente quando me perguntam se vale a pena entrar no Curso de Medicina, aconselho a ponderarem bem essa escolha.
Dr. Pedro Silva: Esta prova constitui uma maior aproximação àquilo que é a prática clínica, relativamente à anterior. No entanto, há certos pontos a ajustar: os enunciados por vezes demasiado longos não incentivam ao raciocínio clínico, mas sim à memorização, pelo que quase não há tempo nenhum para pensar. Acho positivo a ANEM levar as nossas reivindicações aos Ministérios, porém, acho que a situação não se vai alterar, devido às restrições impostas pelo Executivo.
A cobertura do evento terminou com a convicção de que, por mais incerto que seja o futuro da formação Médica em Portugal, os estudantes estão unidos numa luta perseverante e resistente pela qualidade da formação médica e, acima de tudo, pela melhor qualidade de prestação de serviço aos utentes.


Sara Meirinhos, 5º ano

Terapêuticas Não Convencionais

A “Lei do enquadramento base das terapêuticas não convencionais”, Decreto Lei no 45/2003, 22 de agosto, estabelece o “enquadramento da atividade e do exercício dos profissionais que aplicam as terapêuticas não convencionais, tal como são definidas pela Organização Mundial de Saúde”. Considera que delas fazem parte aquelas que “partem de uma base filosófica diferente da medicina convencional e aplicam processos específicos de diagnóstico e terapêuticas próprias” e esclarece que “para efeitos de aplicação da presente lei são reconhecidas como terapêuticas não convencionais as praticadas pela acupunctura, homeopatia, osteopatia, naturopatia, fitoterapia e quiropraxia”.
Apesar de terem legislação própria, estas técnicas não têm regulamentação que lhes permita aceder ao Sistema Nacional de Saúde (SNS), questão que se tem verdadeiramente imposto neste último ano no universo da saúde.
A 25 de janeiro de 2019, o Jornal de Notícias noticiou a assinatura de uma declaração conjunta entre a Ordem dos Médicos portuguesa e a congénere espanhola, Conselho Geral de Colégios Oficiais de Médicos, “em que rejeitam as pseudoterapias e as pseudociências e exigem que estas sejam retiradas dos serviços de saúde e dos consultórios médicos”.
O Presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa, vetou a 31 de janeiro de 2019 o diploma do Governo que reconhecia interesse público à Escola Superior de Terapêuticas Não Convencionais, argumentando que “as Ordens Profissionais competentes não aprovam o ensino de terapêuticas não convencionais” e por “não haver validade cientificamente comprovada”. Na nota publicada no website da Presidência, foram ainda sublinhados os “recuos nesta matéria em países onde o seu ensino tinha sido liberalizado”, e lembrado que em Portugal “apenas foram autorizados cursos públicos deste tipo em dois Politécnicos, mas a título experimental e temporário, tendo sido recusados a outras universidades privadas” e, por conseguinte, “na ausência de garantias de futuro reconhecimento profissional [...] neste momento, não há condições [para a aprovação deste diploma]”.
A 29 de março de 2019 foi noticiado pelo Jornal Observador o manifesto “Por cuidados de saúde de base científica”, assinado por cerca de 700 pessoas, enviado a 26 de março do mesmo ano “a todas as forças políticas com representação na Assembleia da República e a três comissões parlamentares, juntamente com um pedido de audiência”, de acordo com a Comcept (Comunidade Cética Portuguesa), promotora do manifesto. Além de procurar destacar o “desperdício de recursos humanos e materiais”, alerta para “danos diretos, objetivos e mensuráveis, ou indiretos” das terapias não complementares, situação de particular alarme se forem integradas no SNS, principalmente pela falta de evidência científica. O manifesto pede, assim, que seja revogada a legislação própria a estas práticas. É afirmado que se “Portugal goza de níveis de saúde a par com os melhores do mundo”, isso se deve ao facto de as práticas médicas convencionais serem “cientificamente validados e em permanente evolução”, e que a legislação “não traz qualquer benefício concreto à saúde dos portugueses”, é “esbanjadora de recursos e, em última análise, deletéria para a saúde dos portugueses”.
Armando Brito de Sá, médico especialista em Medicina Geral e Familiar e membro da Comunidade Cética Portuguesa, primeiro subscritor do documento, em declarações ao Jornal Público, publicadas a 26 de março de 2019, defende que a intenção “não é, de todo, proibir estas práticas”. “Regulamentá-las, sim, mas fora do âmbito da saúde e não como disciplinas com igualdade científica, como se pretende fazer atualmente em termos de cursos superior. Que sejam remetidas para o seu verdadeiro lugar, o bem-estar, o lazer, e não como intervenções terapêuticas, de tratamento”.
Este tema já deu mote ao programa de debate “Prós e Contras” do dia 1 de abril de 2019 da RTP1, contrapondo médicos, investigadores e praticantes destas técnicas complementares, do qual se ressalva que a verdade científica deve prevalecer sempre, e a maior validade científica só é garantida por ensaios randomizados controlados revistos por pares, que não são efetuados pelos praticantes das “terapêuticas não convencionais”. Também no programa “Olhe que não” da Rádio TSF, de 13 de fevereiro de 2019, que colocou em debate o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o naturopata João Beles, foi trazido a público o facto de os produtos aconselhados por estas “terapêuticas não convencionais” estarem mal regulamentados, tendo um caminho alternativo para chegarem ao mercado, já que não seguem as mesmas regras dos ensaios clínicos, não tendo que passar por um longo e complexo percurso, à semelhança dos fármacos utilizados na medicina convencional.
É impreterivelmente importante a consciência de que são as forças políticas, por meio dos Deputados na Assembleia da República, que fazem ou não avançar as políticas em saúde. Que os saibamos sempre escolher. 
Sara Meirinhos, 5º ano

Errar é Médico

Dificilmente se podia ter escolhido um título mais problemático. Se “errar é humano” e se “um médico é deus, e não humano” (como muitos médicos gostam de ser olhados), então poderíamos talvez deduzir que “errar não é médico”. Ora tal é, se me perdoarem a redundância, um verdadeiro erro. O nosso primeiro defeito está em assumirmos que os médicos nunca se enganam. Quanto mais tempo passo no hospital, mais sou relembrada das falhas que são inerentes aos atos médicos.
Em Portugal, os médicos raramente falam sobre os erros – pelo menos, chega muito pouco aos mais novos, nomeadamente aos estudantes de medicina. Não só é um tema quase tabu, como também a nossa formação médica não inclui geralmente aulas sobre o que é o erro médico e como lhe podemos fazer face – muito provavelmente, porque nem sequer sabemos abordar este assunto. Os médicos portugueses têm o hábito de evitar falar sobre os erros dos outros, por medo de que um dia eles próprios venham a ser criticados.
Portugal encontra-se, pois, manifestamente atrasado em relação a outros países que, por anos de experiência a tentarem combater erros no diagnóstico e no tratamento de doentes, chegaram a conclusões bem estabelecidas sobre o porquê das falhas dos médicos e como as combater.
Muitos já terão ouvido falar acerca da analogia entre a medicina (em especial, os procedimentos cirúrgicos) e a aviação. Esta última foi sofrendo uma marcada evolução ao longo das décadas, culminando numa segurança quase irrepreensível dos seus passageiros. Numa cirurgia, existe um cirurgião principal e o seu assistente (havendo ainda a enfermeira-cirurgiã e podendo haver mais cirurgiões assistentes). Num voo, temos um piloto e o seu copiloto, bem como a restante equipa de bordo. Há o descolar (indução da anestesia) e o aterrar (retirada da sedação). Existe um controlo prévio dos passageiros antes de poderem entrar no avião, bem como existe uma decisão médica prévia sobre se um determinado doente é candidato a cirurgia ou não. Poderia enumerar muitos mais paralelismos, mas o importante é o que podemos retirar disto – nomeadamente, as lições que a aviação nos pode dar de modo a evitarmos o erro médico:
1 – Torre de controlo – todos os médicos devem ter a sua atividade supervisionada. A “torre de controlo” deve ser um médico com (boa!) experiência e que saiba igualmente ensinar. Durante um estágio no estrangeiro, aprendi que certas instituições efetuam gravações de cirurgias (nomeadamente as laparoscópicas e robóticas) que depois são revistas por um ou mais cirurgiões peritos na área em questão. Tal permite registar possíveis erros e perceber melhor porque ocorreram; as gravações vídeo permitem também o seu uso posterior em sessões de formação para cirurgiões, de modo a que estes últimos estejam alertados para tais possibilidades.
2 – Simulação – é obrigatório que os pilotos, antes de começarem a pilotar aviões reais, pratiquem um número mínimo de horas em simuladores de voo. Também os médicos deveriam poder treinar virtualmente qualquer ato médico ou cirúrgico num modelo (em computador, manequim ou cadáver) antes de passarem para um doente. Como o leitor saberá, tal dificilmente corresponde à realidade em Portugal.
3 – Checklists – antes de descolar, estarão todos os motores operacionais? Haverá algum problema nos controlos do avião? A quantidade de gasolina será suficiente para a viagem? Os médicos têm também a obrigação de verificar que “tudo está a postos” antes de iniciarem uma intervenção. Existem já checklists preparadas por peritos internacionais, como a WHO Surgical Safety Checklist, que reúne vários pontos cruciais a ter em conta numa cirurgia, tais como a certificação da identidade do doente, marcação do sítio correto a operar, existência de alergias por parte do doente, entre outros.

O caso mais recente de erro médico que fez escorrer muita tinta jornalística foi precisamente o de um obstetra que tinha simplesmente “degenerado” como médico (assumindo que os erros que cometia não vinham já desde o início da sua carreira). Este caso não é uma novidade, e o fenómeno de médicos que a certo ponto da carreira começam a falhar sistematicamente, por motivos de deterioração de saúde mental ou outros, é já conhecido noutros países. Se houvesse uma torre de controlo, imparcial e abrangente, provavelmente ter-se-ia evitado estes e outros tantos erros.
Podíamos falar aqui de mil e um exemplos de erros cometidos por médicos. É importante conhecermos estas histórias para não as repetirmos nós próprios, mas, infelizmente, o que é passado já nunca se poderá alterar. Está bem estabelecido que os sistemas que tentavam condenar o autor do erro, e não o erro em si, falharam tremendamente na sua missão de diminuir a ocorrência de falhas. Por mais que queiramos apontar o dedo a alguém, o mais importante é falar sobre o que correu mal. Em países anglo-saxónicos, atos médicos e cirúrgicos que tiveram um desfecho negativo são discutidos em reuniões à porta fechada entre os médicos de um determinado serviço ou hospital (morbidity and mortality conferences). Tal também não é uma prática corrente em Portugal, infelizmente.

Em jeito de conclusão, peguei nalgumas máximas da vida e tentei adaptá-las a mensagens que considero fulcrais para qualquer clínico em geral:
1 – Sê o médico que gostarias que alguém fosse para ti
·     Olha-te ao espelho e pergunta-te a ti mesmo: “se viesse a ser tratado por alguém que soubesse tanto como eu, confiaria nessa pessoa?” Se a resposta for negativa, é imperativo que cada um reconheça a necessidade de aprender para poder inverter essa situação.
2 – A tua licença de médico acaba onde começa a dos outros
·   Aproveita para ensinar. Poderás não trabalhar para sempre, mas os teus ensinamentos podem. Ser médico é também ser professor.
3 – Dreno mole em fígado duro, tanto bate até que fura
·      Sim, um dia vais errar, por melhor médica(o) que sejas. Só não errou quem nunca fez nada. Embora não seja completamente evitável, podemos diminuir tanto a frequência como a gravidade do erro médico. Assim, esperemos que em vez de acertar no fígado, um dreno torácico fique apenas ligeiramente mal colocado, e que tal seja prontamente corrigido assim que o erro for detetado…
4 – Quem te avisa, teu doente é
·      Se uma doente afirma que tem um nódulo mamário e o médico responde “Não tem nada!”, atrasando o diagnóstico de cancro de mama por vários meses (história verídica), o mesmo não pode voltar a acontecer no futuro com outras doentes.
5 – Ignorância é infelicidade
·     Já ouviram dizer que a ignorância significa felicidade? No caso dos médicos, é uma total calamidade. Somos todos perfeitos? Mais uma vez não, mas há sempre coisas básicas que devemos saber: se, por exemplo, achas que não há problema em prescrever enalapril a uma grávida, talvez seja altura de atualizares os teus conhecimentos!
6 – O erro não morreu solteiro
·   Importa salientar que, muitas vezes, não foi um único médico quem levou ao desfecho negativo; foi também, por falta de atuação dos restantes médicos que deixaram que o erro permanecesse ou, até, se repetisse. Não é só o erro que pode resultar de um “trabalho” coletivo, mas também a própria prevenção deste pode ser feita em equipa. Por exemplo, um médico pode vir a prescrever uma medicação errada para um determinado doente; se outro médico ou profissional de saúde se aperceber desta falha e a corrigir antes da administração do fármaco, teremos evitado potenciais problemas para o doente.
7 – A justiça é cega e a medicina é muda
·    Os médicos tendem a olhar para o lado e calar-se sempre que um colega “faz asneira”. Novamente, o autor do erro, apesar de em casos muito graves dever ser punido, é quem menos nos interessa. Falar de um erro não significa envio para a prisão; contudo, pela comunidade médica temer demasiado as represálias, acaba por não querer falar dos erros em concreto – esquecemo-nos, pois, que os erros de uns são as lições de todos.
8 – Quem tem medo, compra um livro
·      O medo, em dose adequada, pode ser um bom medicamento contra o erro médico. O excesso de confiança poderá levar aos maiores erros da carreira de um médico. Importa, pois, manter a dose certa de medo, a correr em contínuo como um soro endovenoso…

Uma discussão sobre o erro em medicina necessitaria de um livro inteiro para que fosse minimamente cabal. Contudo, os estudantes de medicina portugueses têm hoje ao seu alcance palestras onde este assunto pode ser abordado, o que é ainda mais importante dada a possibilidade de o fazerem de um modo interativo. Nos dias 16 e 17 de novembro de 2019, decorrerá a 6ª edição do Congresso Nacional de Estudantes de Medicina (CNEM), em Lisboa, que trará este tema para uma Sessão Paralela, juntamente com tantos outros. Discutir o erro será, pois, a escolha mais acertada.

Eduarda Sá-Marta, 6º ano

Primeira Publicação

Caros Leitores,

Bem-vindos à Página Digital da revista do NEM/AAC: a aNEMia! A XXII Direção do NEM decidiu alargar os nossos horizontes e, por isso, criar um departamento reservado para a revista aNEMia. Esta inovação permitiu-nos dedicar mais tempo a este projeto e encontrar formas inovadoras de o levar mais longe. Assim, decidimos dar à aNEMia mais do que somente o formato impresso e conquistar os leitores no meio digital. É, para nós, um enorme orgulho atingir este objetivo e partilhar o fantástico conteúdo produzido pela nossa Redação com mais e mais pessoas.
Deste modo, comprometemo-nos a continuar o fascinante trabalho da redação anterior, aceitando novos desafios e contando sempre com a vossa companhia! Esperamos proporcionar uma fonte de leitura cativante e pertinente para o nosso círculo de leitores!
Queremos, através desta página e da nossa revista, promover a expressão dos estudantes e aumentar a sua ligação não só com o NEM, mas também com a Faculdade, a Medicina e o Mundo.
É assim, com um enorme prazer e com a perspetiva de caminhar a passos de gigante, aproximando-nos de todos aqueles que nos quiserem ler e conhecer, que vos apresentamos a renovada aNEMia!

“Tudo pode ser escrito, se houver coragem para o fazer. O pior inimigo da criatividade é a Insegurança” – Sylvia Plath

A Coordenadora da aNEMia, Sara Cardoso, 4º ano
O Editor Assistente da aNEMia, Filipe Barbosa, 4º ano

Heróis do Quotidiano

Andamos pelas ruas, pelos passeios, dentro de carros, olhamos pelas janelas, cruzamo-nos com eles, mas não os vemos. Nunca os vemos. Nunca sabemos. Se olhamos, não notamos. Talvez não nos interessem, talvez nos sejam invisíveis.
São eles, são os heróis que nos guiam, que nos salvam, que nos inspiram. Inspiram-nos a ser o nosso melhor. Ensinam-nos a inspirar, a mostrar que o podemos ser, que podemos fazer melhor, que podemos ser os nossos próprios heróis.
Um herói não tem de ser aquele homem gigante de capa ao vento, com collants demasiado apertados e roupa interior vestida por cima da restante. Heróis! Uma palavra tão estranha para os nossos ouvidos, mas tão familiar. Eles existem, andam por aí. Andam por aí, mas não os vemos. Não nos interessam.
Temos os olhos virados para nós mesmos, alheios de tudo o que não o nosso umbigo. Não temos noção do que nos rodeia, dos heróis que temos à nossa volta. Heróis como aquela mãe que nos acorda, nos faz o pequeno-almoço e nos leva à escola, mesmo tendo aquela dor de cabeça que parece nunca passar. Heróis como um pai que nunca para em casa, que se mata a trabalhar para pôr comida na mesa e, especialmente, para pagar aquelas sapatilhas fixes que todos os famosos usam hoje em dia e que todos os filhos querem.
Estes são os heróis. Heróis que não vemos, que nos seguem e que nós seguimos. Estão sempre lá, mesmo passando despercebidos. E nós? Será que estamos?
Existem mais, claro. Não são apenas estes. Também outros o são. Também outros merecem uma capa. Heróis como um tio, cuja paixão eram os aviões, cuja paixão era voar, mas que nunca pode realmente abrir asas. Não passava de um rapaz. Um rapaz a seguir um sonho que nunca chegaria. Ficou cego. Sim, cego. Tudo por causa de uma brincadeira e uma granada supostamente desativada. Um azar que lhe tirou a visão e a vida como a conhecia. Também o seu futuro lhe fora roubado. Estava tão perto e não chegou lá. Herói? Parece mais alguém sem sorte. Mas sim, trata-se realmente de um herói, de alguém cuja esmagadora força de vontade prevaleceu sobre os obstáculos.
São heróis como este que nos fazem pensar, aproveitar a vida, querer ser como eles: fortes, perseverantes, felizes. Enfim, heróis. Pessoas que apesar de terem perdido o seu sonho, a sua razão de viver, encontraram uma nova. Continuaram, formaram-se em Direito, escreveram, fizeram pelos outros, fundaram e presidiram a ACAPO e, acima de tudo, foram felizes. Conhecem algo mais irónico do que um cego numa biblioteca? Bem, este cego criou o Serviço de Leitura Especial para Deficientes Visuais, na Biblioteca Municipal de Coimbra, onde trabalhou até ao fim da sua vida. Não ficou por aí, passou por muitos cargos, desde diretor das revistas “Luís Braille” e “Jardim da Sereia” a pai. Sim, pai. Para mim não pode deixar de ser um herói. Nunca viu a sua mulher, nem ela o viu a ele. Nunca viu os seus filhos, mas criou-os e, à sua maneira, viu-os crescer. Foi alguém que não se deixou levar pela corrente, que escolheu o seu rumo passando por cima dos obstáculos, por maiores que fossem e mesmo não os vendo. Alguém com uma força sobre-humana, força essa que a maior parte de nós apenas ousa aspirar a ter.
Como ele há mais. Provavelmente não os vemos, mas em cada um de nós, há um herói. Podemos não o encontrar. Podemos pensar que não está lá. Ou talvez apenas precisemos de olhar com mais atenção.
Se calhar aquela pessoa que nos serve o pequeno almoço no café, aquele taxista que nos deu boleia depois de uma noite na Praça ou a senhora simpática do minimercado do fim da rua também são heróis. Não há forma de saber, não os conhecemos. Talvez nós próprios o sejamos. Não para nós, claro, para outros.
Um herói não tem de mudar o mundo inteiro. Se mudar uma pessoa, já o tornou num lugar melhor para todos. Pouco bem se faz em grandes quantidades. Um resultado qb pode mudar vidas.

Josefa Guerra, 3º ano

Escolha ou consequência

“Alunos do ensino profissional vão passar a poder ingressar no ensino superior sem terem de realizar exame nacionais”. Desde que este título do jornal Expresso saiu para as bancas, muitas vozes se elevaram para o comentar, seja para enaltecerem os que a ela deram origem, seja para os criticarem. No entanto, antes que a minha voz contribua para a polémica em questão, acompanhem-me numa breve atualização dos factos.
O ensino profissional como o conhecemos atualmente foi criado há exatamente trinta anos e tem vindo a crescer progressivamente. O objetivo da sua implementação era combater o insucesso e abandono escolares, preparando os alunos para o mercado de trabalho, pelo desenvolvimento de competências que possibilitam o exercício de atividades profissionais. Por outras palavras, o ensino profissional, ao invés do ensino geral dos cursos cientifico-humanísticos, não tem propriamente o intuito de preparar o aluno para a universidade e sim oferecer uma alternativa muito mais prática e profissionalizante, permitindo à pessoa ingressar no mercado de trabalho pelo menos três anos mais cedo (duração de uma licenciatura) com as competências técnicas necessárias à área do seu interesse. Assim sendo, este ensino, que não é de todo mais fácil, não aborda temas que o ensino geral explora e que são alvo de avaliação nos exames nacionais.
Até aqui, tudo bem. Um aluno do ensino cientifico-humanístico faz os exames nacionais e ingressa no ensino superior, um aluno do ensino profissional realiza a prova de aptidão profissional e dois estágios profissionais e entra no mercado de trabalho. Mas, e quando um aluno do ensino profissional quer, afinal, ir para a universidade? Nesta situação, as circunstâncias não são simples de definir, afinal, este aluno não passou os últimos anos de ensino obrigatório a estudar a matéria das provas de ingresso na universidade e sim a ser avaliado em temas mais diferenciados para o exercício profissional. O facto destes alunos terem que ser avaliados em matérias não lecionadas sempre foi alvo de insatisfação por alunos e professores e esta medida veio acabar com ela: acabaram-se as provas de ingresso para estes alunos. A solução perfeita? Não creio.
Acredito que quando um aluno escolhe ir para um curso profissional enceta um caminho que lhe abre portas que o ensino geral por si só não abre, ou seja, o ensino profissional é uma alternativa para aqueles que não veem futuro num curso cientifico-humanístico, não por ser mais difícil, mas por não lhe despertar interesse como o ensino profissional, mais prático, desperta. Não digo com isto, claro, que uma pessoa que, ao acabar o curso profissional, decida que o ensino superior é o próximo passo, por variadas razões, não tenha o direito de prosseguir com os estudos, mas aí, tem que se sujeitar ao que os alunos do ensino geral se sujeitam para chegar ao mesmo destino destes.
A situação que estes alunos enfrentam não é diferente do exemplo que passo a explicar. Foquemo-nos nos cursos de Línguas e Humanidades e Ciências e Tecnologias, os dois mais escolhidos pelos alunos do ensino secundário geral. Como sabem, estes cursos oferecem saídas profissionais diferentes, abordando, por isso, conteúdos muito diferentes. Imaginemos que um aluno de 12º ano do curso de Humanidades decide que, afinal, pretende ingressar no curso superior de Fisioterapia. Está no seu direito, é claro; no entanto, tem um problema - as provas de ingresso para o seu curso de eleição abordam temas para os quais não foi preparado. A solução neste caso, será, também, que se permita que alunos nestas circunstâncias não façam os exames nacionais exigidos pela faculdade em que quer entrar?
Eu sei, até porque passei por isso, que escolher aos 15 anos o rumo, pelo menos o profissional, para a sua vida, não é fácil. As pessoas mudam de ideias e até se arrependem das escolhas que fazem; não obstante, tal como todos nós temos o direito de fazer as nossas escolhas, temos, também, o dever de lidar com as suas consequências.

Bruna Carvalho, 3º ano


O que me (in)diferencia?

De regresso a um novo ano letivo, abrimos as portas a uma nova edição da aNEMia, a revista que os estudantes de Medicina da FMUC constroem, estruturam, criam e na qual investem o seu tempo, a sua dedicação, a imaginação que os deixa fluir para além de todos os conceitos permanentemente estudados e avaliados, assim como um completo rigor científico associado a todo o trabalho de pesquisa e investigação. A aNEMia é vivida muito para além do papel que os nossos colegas folheiam, é vivida diariamente e é, sobretudo, debatida seriamente. Conservando este conceito, a revista deu um passo importantíssimo nesta transição que a fez ascender a Departamento do NEM/AAC, transição acompanhada por um desafiante lançamento da 55ª edição a 11 de setembro de 2019, a par de um debate que questionou todos os presentes acerca de uma temática que se traduz numa cada vez maior preocupação: a existência de médicos indiferenciados.
Deparámo-nos com esta condição que nos circunscreve e não sabemos, nem podemos saber, ficar indiferentes; não nos preocupamos diretamente com o número avassalador e crescente de indiferenciados que existem, mas ficamos realmente assustados com a possibilidade de nós virmos a ser um deles, mais um deles. Porque os indiferenciados são os nossos colegas, os colegas que estudaram arduamente durante 6 anos para alcançarem um estatuto que os encosta na margem e os impede de prosseguir na especialidade, de continuar a sonhar e de exercer a profissão pela qual percorreram o longo caminho inacabado, interrompido, obstruído por um país que parou, um Portugal conformado e estagnado.
A colaboradora da Redação e autora do artigo que gerou toda a atividade, Sara Meirinhos, introduziu o tema como “um dos maiores flagelos da formação médica” e de seguida o moderador da mesa, Dr. João Nunes, Interno de Formação Geral no CHUC, deu início ao debate questionando os convidados sobre quais consideravam ser os fatores que deram origem a esta problemática. Perante uma plateia completamente preenchida, um dos cinco oradores presentes, Vasco Mendes, Presidente da ANEM, responde que, desde 1995, o curso de Medicina tem aumentado o número de vagas, desprovido de um plano formativo e não acompanhado por perspetivas a longo prazo. Na mesma linha, o Prof. Dr. Carlos Robalo Cordeiro, atual Diretor da FMUC, comenta que “Portugal gosta de dar grandes passos sem fazer a devida estruturação”, apoiado pelo reforçado “mau planeamento” referido pelo Dr. Fausto Pinto, Presidente do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas. Um desses casos é a alteração da prova final de acesso à especialização que necessita de várias adaptações subsequentes, nomeadamente dos currículos para a prova. Para além destes fatores, também o componente político deve ser tido em conta como afirma o Dr. João Cardoso, Interno de Cirurgia Cardiotorácica no CHUC, uma vez que dizer “aumentamos o número de estudantes de medicina” fica bem politicamente. O Dr. Luís Trindade, Presidente do Internato Médico do CHUC, conclui que o número de estudantes depende da formação e esta última da qualidade, logo, devemos refletir sobre a qualidade que pretendemos para este curso com uma média de 30 anos de serviço.
Sendo cada vez mais evidente a existência dos médicos sem especialidade, é colocada uma nova questão que se centraliza no papel destes médicos no SNS, perante a qual são mencionadas tarefas múltiplas asseguradas por uma mão-de-obra barata. “À partida, quem faz medicina é médico, mas que modelo queremos?”, é a pergunta lançada pelo Dr. Fausto Pinto, uma vez que devemos perceber se pretendemos investir numa diferenciação correta com a devida monitorização ou prolongar esta situação, mantendo alguns de parte para outras funções. Apelando a todos nós, o presidente do CEMP afirma que existe uma grande inércia e, portanto, temos de ser criativos nas soluções e propostas. Na verdade, segundo Vasco Mendes, os indiferenciados representam um encargo mais significativo na gestão hospitalar relativamente aos outros profissionais de saúde, dadas as contratações através de empresas (geridas por Médicos Especialistas…) sobretudo num país com elevada recorrência ao Serviço de Urgência. Grande parte da frente de ataque das urgências é, neste momento, assegurada por indiferenciados para satisfazerem as necessidades que deveriam ser confiadas a outros.
Com o avançar da noite, tornou-se notável a necessidade de nos fazermos uma voz cada vez mais firme e audível, de transmitirmos a vontade de nos diferenciarmos e de transformarmos este conformismo sobre o qual os políticos dormem tranquilamente. Quando questionado sobre o papel ativo de um estudante na resolução desta problemática, o Dr. Luís Trindade estimulou a proatividade dos presentes e acrescentou que não devemos deixar fragilizar a nossa estrutura, fazendo notar que a ausência de uma Comissão de Internos, quando existem cerca de mil, é uma falha a colmatar. O Dr. João Cardoso declara que é efetivamente vantajoso estar envolvido em associações que nos representam, no entanto, não nos devemos esconder atrás das grandes estruturas, devendo investir na voz conjunta que ecoa no nosso futuro, espelhada na força que nos impele a viver o sonho pelo qual abdicamos de estar noutro lugar a pensar noutra perspetiva qualquer. Queremos mais e temos o direito de concluir qualitativamente o curso pelo qual conquistámos, um dia, a nossa vaga, o nosso “sim”. Ser indiferenciado não é, de todo, o objetivo pelo qual fomos admitidos em Medicina.
Para terminar, procurou-se responder à questão “Partindo do princípio de que não queremos médicos indiferenciados no país, quais as medidas a ser tomadas nos próximos tempos?”, concluindo-se que é imprescindível uma maior comunicação entre os órgãos responsáveis e uma passagem definitiva da teoria para a prática. Para além disso, considerou-se problemático o facto de a Ordem dos Médicos não possuir um gabinete dedicado ao ensino pré-graduado, pois a existir promover-se-ia uma conversa e, consequentemente, a resolução de vários problemas.
Encerrado o debate, a noite avançou com uma nota sobre a Conferência Médica “Call Me”, a realizar-se nos dias 25, 26 e 27 de outubro, onde este também será um tema de destaque. Depois dos agradecimentos e breves palavras de encorajamento do Dr. Robalo Cordeiro, o evento terminou com um coffee break preparado pelos colaboradores do departamento, dando asas a mais um tempo de convívio e discussão pessoal. A revista, na sua totalidade, expôs-se aos mais diversos olhares, foi tocada e explorada, foi levada e finalmente lançada.
Agora que expusemos esta indiferenciação à qual estamos sujeitos, não nos deixaremos acomodar; apostaremos na continuidade e na insistência de uma história alarmante vivida atualmente por médicos que não queremos que seja a nossa.

Inês Teixeira, 3º ano
Maria Gomes, 3º ano