1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #9 – Neonatologia

O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?
Ser médico neonatologista significa ser pediatra de formação e ter-se dedicado à Pediatria dos mais pequenitos. Implica, portanto: escolher Pediatria como especialidade médica no Internato do Ano Comum, fazer 5 anos de formação em Pediatria (com as valências de Neonatologia e Intensivos Neonatais) e depois do exame final de especialidade, escolher um hospital em que se possa fazer diferenciação em Neonatologia (subespecialidade da Pediatria).
A Neonatologia é a área da Pediatria que trata os recém-nascidos (RN) de termo e RN prematuros (PT).
Somos responsáveis pelos RN de termo, saudáveis, com boa adaptação à vida extrauterina, que ficam em alojamento conjunto com a mãe depois do nascimento. Mas somos também responsáveis pelos RN doentes e RN prematuros que necessitam de cuidados diferenciados, intermédios ou de intensivos, adaptados a cada situação. Nas maternidades da zona centro, estamos presentes em todos os partos.

Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
Sempre senti interesse pela Pediatria! Cliché! Mas quero ser pediatra desde muito cedo. O interesse pela Neonatologia surgiu já na especialidade de Pediatria, durante os estágios de Neonatologia (2º ano de internato) e Cuidados Intensivos Neonatais (4º ano de internato). De tal forma que, mesmo fora dos períodos de estágios, tentei sempre que possível, manter contacto com a Neonatologia e de forma, voluntária, continuava a fazer urgências na maternidade.

Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
A Neonatologia tem a parte boa do RN de termo, muito desejado, que nasce sem qualquer patologia, com boa adaptação à vida extrauterina. Simultaneamente somos chamados a intervir nos RN de termo com patologia com diagnóstico pré-natal (com possibilidade de preparação e planeamento) ou diagnóstico ao nascimento e com necessidade de intervenção e orientação. Acompanha-se também pelo desafio da prematuridade (muitas vezes inesperada) com possibilidade de intervir e ajudar estes pequenitos a sobreviver. Os internamentos dos prematuros são internamentos prolongados, cheios de desafio com as várias complicações da prematuridade, que nos trazem muita satisfação quando conseguimos ajudar.

Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
A equipa da neonatologia da minha maternidade divide o seu trabalho diário, de forma rotativa, em dois internamentos diferentes: enfermaria de puérperas e RN (RN termo saudáveis) e unidade de cuidados intensivos neonatais (RN doente e RN prematuro). Tenho também um período de consulta semanal – consulta de follow-up neurológico – onde seguimos grande prematuros (abaixo das 32S ou PN < 1500gr) e/ou RN termo ou PT com risco de lesão neurológica. Trata-se de uma consulta de Pediatria onde incidimos principalmente nas complicações inerentes à prematuridade e avaliação do desenvolvimento nos 2/3 primeiros anos de vida.
Existem consultas com objetivos diferentes na maternidade. Cada um de nós dedica-se a uma área de interesse – risco psicossocial, infeções congénitas, gémeos, Patologia renal, …

Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
Trata-se de um serviço com bom ambiente e espírito de entreajuda e trabalho de equipa entre médicos das diferentes especialidades (neonatologia, obstetrícia e anestesia), médicos internos e enfermeiros. É um bom serviço para se trabalhar diariamente.

Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
Fiz tudo cá em Coimbra – Faculdade, Internato do Ano Comum e especialidade de Pediatria. Do ponto de vista de Internato, o Hospital Pediátrico de Coimbra permite uma formação sólida em Pediatria Geral e um contacto precoce com as subespecialidades e patologia rara. Nos primeiros anos de internato, quase que nos perdemos um bocadinho na patologia rara, enquanto ainda estamos a tentar aprender as bases da Pediatria Geral. Do ponto de vista de Neonatologia, durante o internato, as vezes sentimos que “pomos pouco a mão na massa”. Somos muito protegidos principalmente nos prematuros, pela especificidade inerente à reanimação nestes RN. Tudo isso fica diluído após terminar a especialidade e integrando a equipa de Neonatologia, em que os procedimentos sempre que possíveis ficam a nossa cargo para “ganharmos” mão. Sinto que recebi uma boa formação.

Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Existe e é aconselhado. A dificuldade as vezes prende-se com o facto de o serviço ser pequeno e precisar muito de nós para a atividade do dia-a-dia e para a escala de urgência. Eu fiz a formação da Neonatologia na minha maternidade, mas existe sempre a possibilidade de fazer formação / ciclo de estudos especiais em Neonatologia (na totalidade ou numa área em especifica) noutros hospitais.

Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Como expliquei acima tenho uma manhã semanal de consulta e nos restantes dias estou na enfermaria de puérperas e RN ou na UCIN, acompanhado os RN internados (vamos rodando pelos dois internamentos a cada 6 meses). Sou também responsável pela realização de ecografia transfontanelar e ecocardíaca funcional.
Tenho um horário de 40 horas semanais, sendo que pelo menos 12h são de urgência. As nossas urgências começam as 13h da tarde e tem sempre 2 elementos na escala (2 especialistas em neonatologia ou 1 especialista e 1 interno de Pediatria). No horário de urgência passamos a ser responsáveis por todos os RN da maternidade: internados na enfermaria de puérperas e RN e na UCIN e pela sala de partos.
A especialidade de Neonatologia caracteriza-se por alguma imprevisibilidade. A maioria dos partos prematuros são inesperados e nos dias em que nascem prematuros ou RN doentes, podemos passar várias horas seguidas de volta deles (entre entubações, cateterismo, e outros procedimentos mais ou menos invasivos).

Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
A equipa da maternidade onde trabalho é uma equipa com poucos elementos e envelhecida, o que traz vários turnos de urgência… A nível nacional, é o que acontece em muitas maternidades do país – poucos neonatologistas e pouca renovação da equipa. Mas é o que acontece também noutras especialidades médicas e cirúrgicas neste momento.
Até a data, julgo que dá para conciliar com hobbies e a vida pessoal e familiar! Mas é uma especialidade que tem urgências de noite e ao fim-de-semana, ao contrário de outras!

Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
Já não sou interna e as minhas respostas referem-se ao período de neonatologia, ou seja, já no pós- internato. Pelo que expliquei acima, trata-se de um serviço pequeno logo bancos de urgência extras. E claro que na fase de formação de Neonatologia, dediquei muitas horas ao serviço. Tinha de tentar aproveitar quando nasciam prematuros e patologias raras para treinar técnicas. Estes casos nem sempre nascem quando estamos no serviço e por isso, às vezes, é preciso estar disponível e ficar de chamada e vir de casa até ganhar treino!

Como interno, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
A Neonatologia é uma área muito específica principalmente quando se trata de um prematuro de 24 ou 25 semanas. Quando perceberam o meu interesse mesmo durante o internato, deixaram-me “por a mão na massa”, mas nos maiores. Temos sempre “as costas quentes” e ainda bem quando se trata de meninos tão pequeninos.
Durante o internato, temos de ser treinados enquanto pediatras, a receber RN de termo que precisam de reanimação na sala de partos, orientar as principais patologias do RN e orientar RN PT >32S, estes sim que podem nascer em qualquer hospital (os PT <32S só nascerão em maternidades de apoio perinatal diferenciado). Nestas situações, sinto que recebi uma formação adequada durante o internato. O treino nos prematuros mais pequenos adquiri já enquanto especialista quando me dediquei à área da Neonatologia.

Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
A Neonatologia é já uma subespecialidade da Pediatria. A liberdade não é total. Temos de ser colocados num hospital em que exista interesse na nossa diferenciação nesta área e depois da autorização, concorrer a concursos nacionais para ciclo de estudos especiais.

Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
A subespecialidade de Neonatologia pode ser adquirida por ciclo de estudos especiais ou solicitada equivalência após 2 anos de treino num serviço com apoio perinatal diferenciado depois de entregar CV que será avaliado por um grupo de peritos.

Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
A abordagem da grande prematuridade e do limite da viabilidade é um dos maiores desafios. É o que nos dá também maior gozo no nosso dia-a-dia, principalmente quando corre tudo pelo melhor, mas é a parte sem dúvida mais difícil e desafiante.

Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
O que conseguimos fazer com os avanços da neonatologia…manter e suportar RN prematuros de 24/25 semanas, cada vez com menos sequelas, é sem dúvida um dos aspectos mais importantes e positivos da nossa especialidade!

Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão de carreira – A carreira médica está “paradinha” em qualquer especialidade neste momento…
Enveredar pela carreira investigacional – A investigação em Portugal é com muito boa vontade de todos nós e nos grandes centros, mas não diria que impossível.
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público – Como neonatologista pode trabalhar no sector público e privado (Lisboa e Porto têm maternidades privadas com unidades de cuidados intensivos que recebem prematuros pelo menos a partir das 32-34S). Pode também fazer consulta de pediatria na privada (somos pediatras na nossa formação de base).

Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Escolheria outra vez por todos os motivos acima apresentados. É um desafio diário, mas muito compensador. Quem gosta de técnica, intensivos, de “por a mão na massa” e pequenitos, gosta de neonatologia!

Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
É preciso gostar de adrenalina. As algoritmos de reanimação e as técnicas treinam-se!

Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Não se esqueçam que a Neonatologia é uma subespecialidade da Pediatria. Primeiro é preciso ser Pediatra!

Texto redigido com a ajuda da Dra. Muriel Ferreira, Médica Neonatologista
0 Comentários