1001 Especialidades: Manual do Estudante Indeciso #11 – Psiquiatria

 O que significa ser médico desta especialidade? Quais são as principais frentes de ação?

Ser Psiquiatra não é ter uma especialidade, é uma forma de estar na vida. Com competências clínicas especializadas, é verdade, mas deixando subjacente outra componente que deveria ser transversal a todos os seres humanos: capacidade de empatia e de valorização das emoções positivas, sem descurar a importância das negativas.
Assim, as frentes de ação são: todas. Onde haja pessoas. Por vezes, mesmo na ausência destas, quando estamos sozinhos connosco próprios. Uma velha máxima é: "para podermos compreender e ajudar as pessoas, temos primeiro de nos conhecer a nós próprios". Com o passar do tempo, esta máxima vai ganhando crescente relevância.
 
Em que momento do seu percurso académico decidiu que tinha interesse em seguir esta especialidade?
A decisão foi linear, descomplicada e apaziguadora. Foi tomada no 4º ano, quando passei pela unidade curricular de Neurociências e Saúde Mental. Antes disso, nunca me ocorrera pensar no “caminho a seguir” - encarava essa escolha como algo longínquo, que preferia protelar. Porém, nesse momento não houve dúvidas. Em diálogo com outros colegas, apercebo-me que os percursos acabam por ser semelhantes. Em alguns casos existe, contudo, desde o início do curso uma tendência ou inclinação natural para a área da Saúde Mental, que se confirma ao concluir a unidade curricular ou estágio clínico na especialidade.
 
Quais as principais razões para ter tomado esta escolha? O que mais procurava e entusiasmava nesta decisão?
A principal razão terá sido a possibilidade de poder ajudar pessoas apenas e simplesmente através da comunicação. Como é óbvio, nem todas as situações podem ser resolvidas dessa forma, nem este aspeto é um que diga respeito apenas à Psiquiatria (pode e deve ser aplicado em todas as especialidades). Nesta, porém, será provavelmente onde é mais relevante.
Acrescento o seguinte: embora o aspeto que refiro acima tenha, entre tantos outros, contribuído para a minha escolha e entusiasmo perante a mesma, esta decisão foi tomada com o coração, atendendo àquela que considerei ser a minha vocação e a área onde, provavelmente, seria mais feliz a exercer. Assinalo que ter este princípio em mente não é, nem deve ser, encarado como algo egoísta: um médico que seja feliz a exercer destacar-se-á invariavelmente daquele que não o é, refletindo-se essa diferença no cuidado prestado e no bem-estar do próprio, dos colegas e dos doentes.
 
Quais são os principais locais/serviços onde acontece o seu trabalho diário?
No internamento (numa das várias enfermarias distribuídas pelos dois pólos - H.U.C e Sobral Cid), serviço de urgência e consulta externa do Hospital.
Há também outros contextos de trabalho assistencial, mais específicos, como as Equipas de Saúde Mental Comunitária (que se deslocam a Centros de Saúde e/ou ao domicílio de doentes em áreas descentralizadas do distrito de Coimbra), a Unidade de Alcoologia, a Psiquiatria Forense, entre outros.
 
Como descreveria o ambiente entre médicos internos/médicos especialistas/ enfermeiros/doentes nos serviços por onde passa? Como é a entreajuda entre os médicos mais e menos experientes?
Estes aspetos podem variar substancialmente entre estabelecimentos/centros hospitalares. No CHUC, felizmente, há um ambiente bastante positivo nas equipas. Acredito que as competências comunicacionais essenciais para o desempenho bem-sucedido nesta área acabam por ser aplicadas também no quotidiano da maioria dessas pessoas. É dada uma maior atenção à criação de boas relações laborais, à minimização de situações de conflituosidade e ao espírito de entreajuda entre profissionais. Tudo isto permite um desempenho mais prazeroso e, no fundo, mais fácil da nossa profissão, algo que tem relevância principalmente a longo prazo (reduzindo em muito a probabilidade de burnout, por exemplo).
 
Considera que existe idoneidade na maior parte das valências pelas quais passa? Como é a qualidade de ensino?
O CHUC apresenta idoneidade na maior parte das valências, com uma ou outra exceção que pode ser devidamente acautelada ao longo do internato. A formação é, de um modo geral, muito boa, também fruto da grande disponibilidade dos Psiquiatras especialistas em partilhar o seu saber e esclarecer dúvidas. Além disso, como hospital central, recebe um grande volume e variedade de doentes, com uma multiplicidade de características sociodemográficas e clínicas, enriquecendo a nossa aprendizagem.
 
Existe, no seu trabalho, a possibilidade de realizar estágios complementares (estrangeiro, formação complementada noutro centro, …)?
Sim. Estão contemplados, na portaria do internato de Psiquiatria, 6 meses para a realização de valências opcionais. A realização destes estágios no estrangeiro é até incentivada, principalmente nos que forem de referência nas respetivas áreas.
Relativamente à realização de estágios noutros centros a nível nacional (e fora deste âmbito opcional), existe essa possibilidade, embora esse pedido tenha de ser muito bem justificado, nomeadamente quanto à pertinência daquele local específico para a realização desse estágio em detrimento da instituição de origem. À partida, existe idoneidade para a realização do mesmo no CHUC, com boa qualidade formativa.
 
Como descreveria um dia de trabalho nesta especialidade? Como caracteriza o nível de esforço e de dedicação a que é sujeito diariamente, na sua profissão?
Uma semana de trabalho típica inclui um a dois turnos de 12h de urgência (diurnos e/ou noturnos), um a três períodos de consulta (que pode ser de Psiquiatria Geral e/ou de uma subespecialidade da Psiquiatria), sendo que um período corresponde, geralmente, a uma manhã ou uma tarde, com duração aproximada de 3 a 4 horas. Durante o restante tempo, faz-se atividade assistencial em serviço de internamento. Esta distribuição permitirá, com grande probabilidade, não exceder as 40 horas de trabalho semanal. Haverá ainda tempo para, no caso dos médicos internos, assistir a atividades formativas, estudar ou preparar trabalhos, tudo dentro das 40 horas.
Dependendo do contexto (internamento, urgência ou consulta), a intensidade do trabalho pode variar. Porém, é um dado relativamente adquirido que na Psiquiatria é preciso mais tempo para cada observação do que na maioria das restantes especialidades (e esse pressuposto acaba por ser, no geral, tido em conta e respeitado, tanto a nível de organização interna como de administração superior).
Um dia típico de trabalho envolve o diálogo com alguns doentes (em contexto de urgência, com duração esperada de 10-15 minutos com cada doente; até 1 hora ou até mais em situação de primeira consulta ou de internamento), havendo ainda lugar para discussão com os restantes elementos da equipa que o acompanham (outros médicos, enfermeiros, assistentes sociais, etc.) ou com familiares e/ou outros entes significativos.
Apesar de cada entrevista clínica poder ser algo desgastante (principalmente quando é preciso entrar em maior detalhe ou ultrapassar alguma resistência por parte do doente em debater determinados assuntos), acaba por haver sempre tempo para tudo. Deste modo, geralmente, não existem níveis de stresse de base elevados que poderiam comprometer o bom desempenho das nossas funções.
 
Considera que esta especialidade é capaz de dar uma boa abertura para a existência de hobbies? E relativamente à vida pessoal/familiar?
Sem dúvida! Comparativamente a muitas outras especialidades, o nosso horário é leve e flexível. Caberá a cada um o envolvimento em atividades de lazer e desenvolvimento pessoal, mas isso trata-se em grande medida da gestão pessoal e preferências de cada um. Da mesma forma, é perfeitamente possível conciliar a carreira com uma vida pessoal e familiar preenchida.
É importante frisar que a Psiquiatria anda, frequentemente, de mãos dadas com a cultura, pelo que o investimento em atividades deste cariz (literatura, música, outros tipos de arte) acaba por trazer, muitas vezes, retorno a nível pessoal e profissional.
 
Relativamente à carga horária, como considera ser a sua carga de trabalho e como descreve as restantes obrigações (horas de trabalho extra, bancos, …)? Ainda nesta questão, o que varia, ao longo dos anos de internato?
A estrutura base da semana de trabalho foi já descrita.
No início do internato, a carga horária é reduzida, uma vez que a atividade é quase exclusivamente observacional e fornece vários momentos para investir na componente teórica. No decorrer do 1º ano, os internos iniciam o apoio ao Serviço de Urgência de Psiquiatria, exclusivamente em turnos de 12 horas diurnos. No 2º ano, iniciam a própria consulta, de forma autónoma e começam a fazer turnos noturnos de urgência (12 horas). A carga de trabalho também depende e reflete, em cada momento do internato, o estágio em que o interno se encontra, havendo algumas diferenças entre estágios a esse respeito. Até ao final do internato, vai-se aumentando essencialmente a carga em consulta (com um aumento progressivo do ficheiro de cada um) e em atividades formativas, como participação em projetos de investigação, lecionação em colaboração com a FMUC, etc.
O horário de trabalho de base não subentende uma sobrecarga laboral. Dependendo do investimento que cada um pretende fazer na formação, ele poderá ficar mais ou menos ocupado. No CHUC, transversalmente a todas as especialidades, esse investimento é bastante incentivado, pelo que no final do internato é provável que haja o envolvimento em várias atividades desse género.
 
Como interno, como é/foi o seu grau de independência nas técnicas e abordagem para com os doentes?
Na minha opinião, o adequado. Há um período inicial de aprendizagem, essencialmente observacional, transitando gradualmente para o contacto direto com os doentes, mas sempre tutorizado. Quando o interno se sente confortável em assumir funções com maior autonomia, tem também essa liberdade.
 
Quais as subespecialidades pelas quais se poderá optar? Existe liberdade total para esta escolha? Como acontece o processo?
Na Psiquiatria existem várias subespecialidades, grande parte delas com consulta respetiva no CHUC. Alguns exemplos são: perturbação obsessiva-compulsiva; primeiro episódio psicótico; prevenção do suicídio; gerontopsiquiatria; perturbações do comportamento alimentar; psiquiatria de ligação às doenças do movimento; perturbações do neurodesenvolvimento; medicina psicossomática; adições; entre outras.
Tradicionalmente, a escolha das subespecialidades por parte dos internos é feita sob influência do Orientador de Formação. Porém, nos últimos anos, tem havido uma tentativa de permitir um fluxo mais livre e escolha independente do orientador, fornecendo aos internos a possibilidade de contactar com cada uma destas ao longo da sua formação, de forma a fazer uma escolha mais informada.
 
Como acontecem os momentos de avaliação? Em que período do ano? Qual o grau de dedicação e maiores dificuldades?
Atualmente, há 3 momentos de avaliação intercalar ao longo do internato (excluindo o exame final para aquisição do grau de Especialista), seguindo-se aos estágios de maior duração - internamento feminino/masculino e hospital de dia.
O exame intercalar, em termos de estrutura, consiste na colheita de uma história clínica sobre um/a doente do respetivo serviço onde o estágio foi realizado. Esta história será apresentada, num momento formal, a um júri constituído pelo/a Orientador/a, Tutor/a desse estágio e Diretor de Serviço. Há, adicionalmente, espaço para debater aspetos formais e teóricos dessa mesma história clínica, bem como expor e discutir o currículo e relatório de atividades do período transato. Finalmente, existe um breve exame oral com questões teóricas.
Embora sejam sempre momentos de alguma tensão, o primeiro exame acaba por ser o mais marcante e gerador de stresse e ansiedade. Os exames posteriores vão sendo, gradualmente, encarados com maior naturalidade, quase como se de uma mera formalidade se tratasse.
Ao longo do internato vamos, naturalmente, estudando todos os conteúdos que acabam por ser perguntados e abordados nos momentos de exame, pelo que o estudo nas semanas e dias prévios ao exame acaba por consistir mais numa espécie de revisão de matéria e conteúdos.
 
Qual diria ser a maior dificuldade que encontra nesta especialidade?
Confrontar-nos com situações de doentes que se recusam a aceitar que precisam de ajuda. Apesar de ser uma grande dificuldade, encaro-a como um fator desafiante, já que a relação médico-doente nestes casos assume uma importância vital.
 
Quais os principais fatores positivos na sua especialidade?
Destaco três:
1. A sensação de gratidão em conseguir ajudar os outros com poucos recursos - muitas vezes, simplesmente através da comunicação;
2. O aprofundamento do conhecimento do Ser Humano e das suas emoções, cognições e comportamentos;
3. O desenvolvimento da empatia como a mais poderosa ferramenta terapêutica – o verdadeiro solvente das relações humanas.
 
Como descreveria a sua especialidade em relação à possibilidade de:
Progressão de carreira – Julgo que idêntica a qualquer outra – é possível, desde que haja vontade.
Enveredar pela carreira investigacional – Está previsto que a geração que começa agora a dar os primeiros passos na Medicina irá, ao longo da sua carreira, enfrentar o "boom" de conhecimento na área da Psiquiatria. Ainda sabemos muito pouca coisa, mas os mecanismos neurobiológicos são cada vez mais relevantes e, a próxima geração vai ser responsável por esses grandes desenvolvimentos que irão revolucionar a prática psiquiátrica. Para além disso, a aliança já antiga, mas sempre atual e cada vez mais relevante, entre a Psiquiatria e outras áreas muito relevantes do Saber, como a Psicologia, abre portas a uma multiplicidade de campos de investigação, tais como: o desenvolvimento de instrumentos de diagnóstico para fins clínicos e de investigação; desenvolvimento e validação de instrumentos de avaliação psicológica; implementação de programas de prevenção e intervenção psicoterapêuticos, entre outras.
Constante inovação científica – Tal como mencionado na resposta anterior, será muito provavelmente na nossa geração que encontraremos a maior revolução na Psiquiatria como a conhecemos. Vamos ter muitas novidades a breve e longo prazo.
Oportunidades de trabalho tanto no setor privado como público – Existe muita procura no setor privado e prevê-se que seja cada vez maior. Relativamente ao setor público, são muitos os estabelecimentos do SNS por todo o país que têm a especialidade de Psiquiatria, sendo que existe alguma variância quanto à oferta assistencial entre eles, sobretudo nos mais pequenos/distritais. Estes podem, por exemplo, ter apenas serviço de consulta externa (e não internamento ou serviço de urgência). Assim sendo, é frequente abrirem concursos para vagas de assistente hospitalar de Psiquiatria.
 
Escolhia novamente esta especialidade? Está a corresponder às expectativas que tinha? Quais foram as principais surpresas?
Tinha 99% de certeza quando escolhi. Desde então (e sem algum momento de arrependimento), é um 100% seguro.
Diria que a principal surpresa foi perceber o avanço que está a ser feito em termos de investigação, na área da Saúde Mental. É algo que me deixa otimista e com vontade de fazer parte do que está para vir!
 
Diria que é necessário mais talento/arte ou, por outro lado, estudo/dedicação para se prosseguir esta especialidade?
Não descurando a vertente teórica e a importância do esforço para TUDO na vida, é essencial que um bom Psiquiatria tenha boas competências de comunicação, seja observador e empático. Estas competências, esta arte, geralmente já “vem com a pessoa", embora possa ser desenvolvida e melhorada com os anos e seja previsível que assim seja. Assim, pessoalmente, valorizaria mais a componente "talento". Voltemos a uma das questões iniciais, em que vos confessei que escolhi com o coração. Talvez esta pergunta feita a diferentes pessoas fosse, de todas, a que teria maior variabilidade nas respostas. A natureza da resposta é, provavelmente, um reflexo bastante fiel da natureza da pessoa. Mas para vos provar o meu ponto, desafio-vos a imaginarem o Dr. House como Psiquiatra, independentemente de todo o seu conhecimento teórico.
 
Tem alguma consideração importante a fazer que ainda não tenha sido abordada?
Quando escolherem, escolham o que acreditam que vos fará felizes.
Se, após a escolha, não forem felizes… escolham outra vez. Não tenham pressa. Nesse caso, repetir o exame nunca será um ano perdido: será sempre um ano a ganhar e cada um de vós deve isso a si próprio – escolher ser feliz para o resto da vida. O trabalho ocupa uma parte importante do nosso tempo e acaba por ser uma fatia substancial da nossa identidade. Sermos infelizes nele é abrirmos a porta para sermos infelizes no resto, na vida. Não o façam. Nas palavras de Raul Solnado: “Façam o favor de ser felizes!”.

Texto redigido com a ajuda da Dra. Carolina Cabaços, em colaboração com outros colegas de Psiquiatria do CHUC 
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