Depois de sair da crisálida, a borboleta possui ainda
pequenas e macias asas antes destas assumirem a sua verdadeira forma e
endurecerem. Descobrem depois a leveza do primeiro voo e, nessa inocência, voam
simplesmente…
Em
momento algum nos é dito de que são feitas as coisas ou como são feitas. Vamos
observando e experimentando aquilo que outros observaram e experimentaram e,
dessa forma, vamos decidindo quais os atalhos que queremos percorrer. É um
caminho fácil? Às vezes é! Umas vezes, tem apenas algumas facilidades. Outras,
é “assim-assim” e em casos menos raros do que o que se possa imaginar, é um
“assim- assim” que se prolonga indeterminadamente até não sabermos mais qual o
princípio da questão. É verdade que aos 18 anos (ou por volta disso), temos de
fazer escolhas. Importantes, assim o dizem. Depois, é só depositar todos os
nossos sonhos, esperanças e capacidades nessas escolhas e esperar que o resto
“venha por acréscimo”. Mas nem sempre esse acréscimo acrescenta nem tão pouco
sabemos se nos vamos aperceber disso tardia ou prematuramente. Suponhamos que
faz tudo parte do processo complexo que é a transformação de um jovem
adolescente (des)preocupado num jovem adulto consciencioconformado, passo a
expressão.
Ora,
todo este discurso motivacional e retórico em forma de desabafo serviu para
finalmente iniciarmos o tema central desta pseudocrónica: Concurso de Medicina
para Licenciados. Alguns devem estar a pensar… “Isso existe?”… “É um tipo de
medicina alternativa?”… “É uma maneira mais fácil de entrar em medicina?”… “É
uma realidade disparatada perante a problemática das vagas para a especialidade
nos dias de hoje?”
Sim.
Não. Depende do ponto de vista. Disparate não creio, complicado talvez. Vamos
então conversar.
Ingressar
no Mestrado Integrado em Medicina nem sempre é fácil e as histórias divergem.
Se, por um lado, temos aqueles que sempre quiseram entrar, conseguindo ou não,
temos, numa outra esfera, aqueles que se mantiveram num limbo de escolhas
polivalentes e que acabaram por deixar a hipótese de lado por diferentes
razões. Estes últimos acabam por navegar sob efeito de outros ventos, muitas
vezes sem saberem que acabarão por chegar, na proa, ao mesmo porto e com uma
bagagem a transbordar.
Licenciados,
Mestres, Doutorados (ou mais, porque o céu é o limite), muitos deles tentam a
sua sorte neste concurso que vai passando despercebido a quem de nada disto
percebe.
Na
verdade, é um concurso que faz lembrar o ingresso no ensino médico, por exemplo,
dos EUA. Lá, não é possível iniciar o curso de medicina logo após o ensino
secundário e tem de haver a conclusão prévia de uma licenciatura noutra área
(que tem de incluir as disciplinas pré-requisito para a posterior candidatura).
Anualmente,
todas as Escolas Médicas portuguesas abrem vagas por este concurso para o
Mestrado Integrado em Medicina, e estas podem ser preenchidas até 15% do
numerus clausus previsto pelo concurso regular de acesso, segundo a legislação
atual. Contudo, a tipologia do concurso varia de faculdade para faculdade.
Foquemo-nos apenas no regulamento imposto pela FMUC.
Na
candidatura, há que ter atenção aos procedimentos e prazos do regulamento, para
que nada falhe.
QUEM É ADMITIDO A CONCURSO?
Os
candidatos terão de ser titulares de uma licenciatura ou mestrado integrado
nacional, em áreas afim da Medicina (Biologia, Bioquímica, Ciências da
Nutrição, Ciências do Desporto, Ciências Farmacêuticas, Cursos de Tecnologia da
Saúde, Enfermagem, Engenharia Biomédica, Medicina Dentária, Medicina Veterinária
e Psicologia) e satisfazer o pré-requisito fixado para acesso ao curso no
respetivo ano letivo (este último ponto é exatamente igual ao contingente
normal).
Não
será novidade dizer que a candidatura está sujeita a um emolumento no valor de
100€ (relativamente ao panorama nacional, até é simpático por ser dos menos
dispendiosos) e que os devidos documentos (formulário de candidatura,
comprovativo de pagamento, BI/CC, documentos oficiais comprovativos da
conclusão do ensino secundário e de licenciatura ou mestrado integrado) têm obrigatoriamente
de ser apresentados e as candidaturas que não cumpram qualquer um dos
requisitos são liminarmente indeferidas pelo júri competente.
COMO TUDO SE PROCESSA?
O
concurso é, antes de mais, dividido em duas fases.
Na
1ª fase, são aplicados critérios de seriação que se prendem com três etapas
fundamentais que são, individualmente, cotadas para 20 pontos, num total de 60
pontos: idade (até aos 29 anos, não há penalização e são atribuídos 20 pontos,
começando a ser descontados pontos a partir dessa idade) – e vocês dizem
“Fácil!”, ao passo que eu digo “Olhem que às vezes este critério pode estragar
os planos a muito boa gente!” –, média final do Ensino Secundário ou
equivalente (numa escala de 20, a média arredondada às unidades corresponde à
pontuação respetiva) – “Pois é, para quem pensa que as médias não interessam…
interessam” – e, por último, média da licenciatura ou mestrado integrado –
“Estão a ver como as médias continuam a interessar? Duplamente!”. Perante isto,
feitas as contas de “sumir”, apenas 48 pessoas (os tais 15% das vagas mais 10)
das centenas que costumam concorrer, vão estar do lado certo da matemática e
vão passar à 2ª fase.
Esta
última é talvez a mais desafiante e que deveria existir em todos os concursos
para cursos que implicam relacionamento interpessoal, como é o caso de
medicina: a entrevista. Tem a curta duração de 15 minutos, três atentos jurados
e embala o projeto de um sonho. Na 2ª fase, o máximo de candidatos que podem
ser admitidos não pode ser superior às 38 vagas disponíveis (mas mesmo estas 38
vagas podem não ser todas preenchidas, tudo vai depender dos candidatos a
concurso e do seu desempenho na entrevista).
A
entrevista varia entre candidatos, e procura avaliar o mesmo de uma forma geral
e, simultaneamente, personalizada. A postura, a vontade e garra demonstradas
para frequentar o curso de medicina são importantes, mas também são avaliados
os atributos/valores que o corpo docente júri considera essenciais num futuro
médico. A lista é extensa: empatia, discernimento, perseverança, argumentação
sobre questões atuais, aspirações pessoais/profissionais, entre outros temas
“fora da caixa” (o que talvez seja uma maneira eficaz de alavancar ou enterrar
o candidato, já que a diferença entre quem entra ou não está nos detalhes).
Para
os leitores que possam questionar-se: “Como se conhece alguém em 15 minutos? É
impossível, até porque há muitos fatores externos que podem influenciar!” Tem
razão, caro leitor. Não é uma tarefa fácil (daí apenas cerca de 20 pessoas
terem entrado nos últimos anos), mas acredite que em 15 minutos de pressão, eles vão testar o candidato até
verem onde ele pode ir, esperando que o candidato se teste a si próprio.
A
pressão pode pairar de várias formas: uma conversa informal, um questionário em
que cada jurado desempenha o papel de “bom”, “mau” e “moderador”, uma “reunião”
bem ao estilo tradicional de entrevista de emprego… É impossível saber o que
vai suceder a cada um. Os candidatos devem mostrar ter disponibilidade total
para a demanda exigente que o curso representa, e terem mais “vida” para lá do
estudo é importante. Aptidões/interesses noutras áreas são valorizados, assim
como motivações/opiniões pessoais, atividades extracurriculares socioculturais,
percurso académico e/ou profissional… Acho que já me fiz entender.
Depois,
é só esperar ansiosamente pela lista dos candidatos admitidos e ter fé.
Há
que contextualizar este concurso no cenário atual. “Um disparate”, pensam
muitos, face à realidade da falta de vagas para a especialidade que se tem
verificado. Diria que é uma forma diferente de ingressar em medicina, mas não
que é mais ou menos justa. Tem vantagens e desvantagens, como em tudo na vida,
no entanto, não me cabe fazer juízos de valor acerca da abolição do mesmo.
Estaria a dar a face à hipocrisia.
Mas,
calma, temos pés bem assentes no chão e está claro que os problemas existem e
não nos passam simplesmente ao lado (não a toda a gente), e são preocupantes.
Vamos aos factos:
- Há
uma distribuição anormal de médicos no país, sendo muitos deles atraídos para o
setor privado, saindo assim do Serviço Nacional de Saúde (SNS);
-
SNS está carenciado em médicos especialistas;
-
Redução das vagas para a especialidade;
-
Reitera-se que o numerus clausus de vagas em medicina é excessivo, o que não
contribui favoravelmente para uma eficiente formação médica e põe o futuro dos
jovens estudantes na corda bamba;
-
Recém-formados portugueses que estudaram no estrangeiro, voltam com melhores
médias para tirar especialidade;
-
Caos instalado.
Estão
a ver? Escrevo meia dúzia de premissas e rapidamente quem se esforça por
entender esta trapalhada conclui: é uma questão política. E o panorama não vai
melhorar (nisto, todos devemos concordar). Devido à falta de planificação de
recursos humanos e pela dificuldade em atuar perante os obstáculos.
A
existir, a redução das vagas no contingente normal repercutir-se-á
automaticamente neste concurso. Ultimamente, não têm vindo a ser todas
preenchidas (na FMUC) e isso já pode ser uma forma de restrição.
Pode
acontecer que os licenciados sejam alvo de algumas críticas relativamente aos
alunos do contingente geral, sendo “acusados de ingressarem com menos mérito”.
Ao contrário do que já ouvi, estes licenciados podem ser tão brilhantes como os
seus pares. Terem entrado por esta via não implica terem de ser rotulados como
“pessoas cuja média não foi suficiente”. Essa ideia não deve ser generalizada
como um dogma, porque a verdade é multifacetada. Isso pode ser efetivamente
verdade em alguns casos, mas não noutros e, querendo optar por essa afirmação
enviesada, ficam por analisar outras características tão importantes que não
vêm anexadas às centésimas de uma média (do ensino secundário) final.
O
percurso de vida de cada um, inclusive de um licenciado (ou mais graduado),
como um origami, pode ser moldado sem nunca, porém, lhe serem apagados os
vincos da sua história passada. Por isso… Voltar atrás para seguir em frente?
Porque não? Se já deram o primeiro passo, que é optar por esta via (o que já
demonstra muita capacidade de resiliência), só resta continuar. Vão ficar
espantados com as repercussões que esse sonho poderá ter daí em diante, se o
souberem agarrar.
Sublime, a borboleta vagueia na brisa estival exibindo o brilho
na parte superior das suas asas. Numa elegância, dobram, desdobram e poisam
gentilmente. Saberão elas da sua culpa na tempestade, por terem simplesmente
voado?
Ana Sousa, 2º ano