Saio
à rua. O sol incide-me na face com a crueza imposta pelas primeiras horas da
tarde e a pele da fronte retesa-se com a estranheza desta interação já tão fora
do habitual. Ergo a mão esquerda, que me desafoga a vista, e estaco por uns
segundos a saborear o fluxo luminoso que se esgueira por entre os dedos e que
me acaricia as falanges com o deleite próprio dos amantes reencontrados. Na mão
direita carrego o saco do lixo: despojos de uma vida feita de retalhos
vagamente unidos pela cadência rotineira dos dias sempre iguais. Abro as
hostilidades com o primeiro passo e prossigo a caminhar com a falsa valentia
que me encrava o receio na glote. A rua está desolada. A luz tórrida remete
tudo à minha volta ao silêncio e nem o rumorejar fino das folhas se atreve a
soar. Os meus passos, ressoando no solo granuloso da berma da estrada,
perturbam todo este cenário e infundem em mim a desconcertante impressão de
estar a pisar solo inimigo – um inimigo invisível que exatamente por isso em
todo o lado se vê. Avisto ao fundo o contentor e os meus passos ato contínuo se
apressam, rumando no seu encalce e eu seguindo por arrasto. Os muros somem-se
vertiginosos a meu lado, os limites das casas esfumam-se, o espaço acerca-se e
a visão afunila tendo em vista só e apenas aquele deslocado objeto de cor verde
suja. Detenho-me um instante e aprecio as suas feições disformes, as rodas em
desalinho carcomidas de ferrugem, a postura derreada de mendigo sem esperança e
a aba da tampa com a habitual gosma sarrenta conspurcada pelas mãos do mundo –
tampa essa que se afigura hoje mais corrompida ainda e que num repente se vê
assolada por mais manchas pestilentas e repulsivas, brotando em toda a
superfície, assomando da minha mente para se estenderem por toda a parte – a
mente quando se esforça verga o real ao seu intento, mais ainda se é sequestra
do medo.
Abro
a tampa com a mão esquerda, uma névoa putrefacta emprenha-me as narinas, o saco
ergue-se a custo da mão direita e este desenha um arco por sobre a minha cabeça
caindo desamparado sobre os seus semelhantes, desprovido de charme e graça,
posando desleixadamente sobre a massa sobrante de outras casas. Deixo cair a
tampa com estrépito. Contemplo uma vez mais este objeto deselegante e tosco e
sinto- me inundado por uma profunda empatia: depositário de memórias – retalhos
de jantares passados em família, a nabiça e a cenoura empregues na sopa de
carinho maternal, a cebola do refugado inundando a casa de aroma a aconchego e
calma, o morango desfolhado, a batata descascada, a laranja posta a nu, um sorriso,
uma garfada que nos transporta para a nostalgia de uma infância perdida no
tempo e que é de novo resgatada – tudo isto amalgamado agora num entulho amorfo
que apelidamos de lixo, sobras, despojos, um sobejo, nada: pacientemente
aguardam a chegada do homem do lixo, ou recolector de memórias, que as irá encaminhar
ao seu eterno descanso. Um ardor na mão esquerda arrebata-me de rompante para
fora dos meus pensamentos. Dou meia volta e prossigo no mesmo caminho, por
passos diferentes retomando a casa.
As
pernas bambeiam-me, caminho à banda pelo peso da mão devassada que agora sinto
em fogo: fagulhas chispando da ponta dos dedos, contraturas e pruridos
irrompendo da carne, nevralgias faiscando e todo o tipo de cáusticos e
emplastros corrosivos que agora levo comigo e que vão presos à mão esquerda.
Surge-me um desconforto no sobrolho direito (Não coces), já estou quase a
chegar à porta e sinto o coração a bater na boca, novamente o sobrolho (Não
coces). Pego na chave com a mão direita (Toquei na tampa com a mão esquerda?),
introduzo-a na fechadura e dou uma volta, alegrando-me com o retinir
concordante das engrenagens que me concedem a entrada. Escuso as habituais
saudações e vou direto ao quarto de banho.
Abro
a torneira com a mão direita (Sim, foi com a mão esquerda que lhe toquei),
mergulho mãos ambas no fluxo retemperador da água canalizada, com a mão direita
arranco uma porção de sabão ao doseador e inicio a dança concertada dos dedos.
As mãos enlaçam-se uma na outra e entrançam-se numa orgia de espuma, o aroma
perfumado de orquídeas embebeda-me os sentidos, requebra-me o olhar e o peito
vai, pouco a pouco, deixando escapar o ar que havia feito refém, suspirando de
alívio e de prazer. Abandono a divisão com os humores novamente em equilíbrio,
sentindo-me pleno e em sintonia com estas paredes intocadas e o afago asséptico
do ar que respiro. Dirijo-me à sala e deito-me no sofá. Sinto-me em paz e
deixo-me embalar pelo banho reconfortante dos estofos higienizados. Fecho os
olhos finalmente rendido à segurança do lar, e deixo desfiar a epopeia dos
sonhos que agora acontece na parte de dentro das minhas pálpebras.
Samuel Tavares
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